Providence, por Orlando L. Fassoni

A mais recente obra cinematográfica do diretor Alain Resnais, Providence, vai estrear hoje na sala Portinari do Cine Belas Artes, aguardada com expectativa pelo público que, dele, tem as memoráveis lembranças de Hiroshima, Meu Amor e O Ano Passado em Marienbad, por exemplo. Expectativa que se amplia se considerarmos os seis prêmios César, o Oscar do cinema francês, ganhos pelo filme em 78, sem contar outros; e se levarmos em conta, também, a fato de que, numa das primeiras vezes, Resnais parece ter tentado, através de um tema tão sério quanto os anteriores, abandonar um pouco o hermetismo que sempre caracterizou o seu trabalho, optando por uma forma com maiores concessões ao humor.

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Escrito por David Mercer, realizado com um orçamento de um milhão de dólares, filmado na Inglaterra, Bélgica, no centro da França e ainda nos Estados Unidos, intercalando desde o barroco vienense até o estilo vitoriano e a claridade francesa, a obra – com Dirk Bogarde, Ellen Burstyn, John Gielgud, David Warner e Elaine Stritch – é, para uns, um jogo de implicações trágicas, para outros, um tipo de psicodrama de cinco personagens. Mas, para Resnais, é antes de tudo uma comédia.

“Uma comédia macabra – afirma – mas que se encaminha um pouco em direção ao divertimento. Não pretendi fazer um filme muito sério sobre o problema da criação ou este gênero de coisa. No entanto, poderá se considerar Providence como uma reflexão sobre direção na medida em que o personagem principal, o escritor Clive Langhan, é ele mesmo um diretor cinematográfico que se esforça para fazer um romance ou um filme e que falha no empreendimento, a vida contradizendo a ficção. Nós tentamos fazer Clive cometer erros, se enganar nos seus ajustamentos. Seu estado de embriaguez tornava a coisa mais plausível e nós procuramos, aí, uma espécie de autenticidade no erro.”

Basicamente, Resnais, segundo os críticos, construiu uma obra em torno dos processos e do mistério da criação literária. Uma parte da história se passa na imaginação de Clive (John Gielgud), o escritor que, às vésperas dos 78 anos e ciente de que vai morrer, concebe durante a noite o seu último romance, narrativa onde não fala apenas de si próprio como também das pessoas que lhe são intimamente ligadas, principalmente do filho mais velho, Claud (Bogarde). É, também, vítima de um pesadelo.

Um dos temas principais do seu último livro é o suicidio de sua mulher. Clive não sabe exatamente se teria sido o responsável e imagina-se até que ponto o suicidio afetou seu relacionamento com o filho. No decorrer da história que constrói, o escritor vai imaginando um complicado jogo em que as cenas de seu pesadelo se misturam com os acontecimentos da vida real. Os personagens, que no livro possuem uma concepção, mostram-se em toda a sua verdadeira dimensão, e seus conflitos, imaginados por Clive Langhan, não são senão os frutos de sua criação.

Resnais liga, assim, a arte e a vida, tentando mostrar como o escritor vivia sua realidade subjetiva, diferente da realidade objetiva, e que seus fantasmas são o plano geral de um romance no qual, enquanto ele pensa que está dissecando e expondo outras pessoas, na verdade está retratando a si mesmo e revelando aspectos desconhecidos de sua personalidade.

Segundo Resnais, Clive é um ser que age como a Providência, daí o título Providence à propriedade particular onde ele vive. E, como a Providência, ele não consegue fazer sempre o que pretende com as personagens, os amigos e familiares que usa na ficção nem sempre obedecem aos caprichos de sua excessiva fantasia.

“Clive é desses que não se resignam com a morte. Sofre dores atrozes mas decide fazer seu cérebro funcionar até o fim. Ao longo de todo o filme tem-se a sensação de que se ele se abandonasse por um único momento, isto é, se não tomasse seu vinho branco favorito e renunciasse a imaginar sua novela, seu corpo cederia. É a imaginação que o mantém com vida. Há, também, um angustiante problema pirandelliano: Quem somos realmente? As coisas são como imaginamos ou nossa imaginação é que as deforma? Considerando que passamos nosso tempo julgando o próximo, surge a indagação: Nós somos como nos vemos ou nos tornamos o que os outros pensam quando nos julgam? A partir deste ponto de vista o filme pode parecer um duplo julgamento, dos pais sobre os filhos ou vice-versa. Na primeira parte, o pai é o acusador, acha que existe uma espécie de complô contra ele. Na segunda, o acusador se vê no banco dos réus. A fita, então, se move em torno do problema da possessão entre as pessoas.”

Negando que tenha inspirado seu personagem em algum escritor em particular, Hemingway ou Malraux, por exemplo, Resnais afirma que Clive é uma das suas figuras mais controvertidas, um ser emocionante, que luta para continuar vivendo, se rebela contra a morte, expondo essa estranha condição do ser humano de saber que somos mortais e que continuamos a existir.

“Ele tem ainda mais méritos por se apegar à vida quando está no centro de desordens corporais extremamente dolorosas. Ele é velho, muito velho, e se sente perseguido, como todos os velhos que têm a impressão (não falsa) de que os jovens querem se livrar deles. Daí as imagens do estádio, onde Clive os encurrala para executá-los. O estádio é um lugar alegre e divertido durante o dia, mas à noite vai ser o palco do horror absoluto.”

Resnais é, para muitos, um cineasta ligado intimamente à literatura, o que é explicável: o roteiro de Hiroshima é de Marguerite Duras, o de Marienbad é de Alain Robbe-Grillet, um dos líderes do nouveau roman; e trabalhou com Jorge Semprún em dois de seus últimos filmes, A Guerra Acabou e Stavisky. E agora seu colaborador é David Mercer, que, diz Resnais, o seduziu por sua linguagem, o ritmo dos seus diálogos, a sua escolha das palavras e sua sonoridade.

“E também, claro, porque ele sempre esteve à procura de um tipo de teatro não realista. É um escritor vivido. Quando ele lê suas histórias eu suponho que deve ser o primeiro a se surpreender, porque se distancia voluntariamente dos seus textos, observa as cenas e os seus personagens do exterior, como espectador.”

Resnais, apesar da intimidade com os autores citados, não se considera um diretor literário e afirma que a ligação com eles é casual. Diz que, de modo geral, suas ideias do filme surgem no trabalho de montagem, porque considera que mais importante do que um roteiro é o jogo dos contrastes e das formas, linhas, volumes etc.

“É mais importante o jogo dos sentimentos que a psicologia dos personagens. Na montagem procuro provocar um encontro dialético de emoções visuais, sonoras, sentimentais e, em igual medida, a lógica da ação e a livre associação de ideias aparentemente irracionais. A construção dramática é sugerida mais pela emoção do que pelo raciocínio. Imagens, cenas, sequências se estruturam segundo uma relação que eu chamaria musical. Em minha opinião um filme se parece mais a um quarteto, a um poema sinfônico, que a uma novela. Talvez seja por isso que o autor que me influencia mais não é um escritor, mas um músico. Stravinski.”

A forma, na concepção de Resnais, é a emoção. Essa preocupação está nos ambientes, na música, na cor de Providence, e inclusive na boca de seu personagem, Clive Langhan, quando ele refuta as acusações de que a preocupação com a forma desumaniza suas figuras literárias. “Sem forma – acentua Resnais – não há comunicação possível, e um filme informe não pode ter audiência.”

Folha de S. Paulo (“Os conflitos entre realidade e fantasia”; Ilustrada, 21 de maio de 1979)

Veja também:
Hiroshima, Meu Amor, por Antonio Moniz Vianna

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