Corações Loucos, de Bertrand Blier

Inseparáveis do início ao fim, os dois amigos misturam crime e brincadeira, graça e grosseria. Fazem o que querem, não se deixam prever. Dividem as mesmas mulheres, os mesmos carros roubados. Nada há para saber dessas vidas desregradas, dessas crianças em corpos adultos, calças sujas e camisetas coladas a corpos torneados, cabelos a cortar.

ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook e Telegram

Contra elas, em Corações Loucos, os erros, as consequências naturais a quem decidiu viver no limite. À margem, nossos protagonistas envolvem-se em problemas não apenas por um punhado de dinheiro ou solução; às vezes roubam um carro ou uma moto como parte da fuga imprevista, para migrar a qualquer lugar que possa abrigá-los.

O filme de Bertrand Blier continua a nos desafiar. Duas personagens, uma série de problemas, ou bagunças, ou tropeços, e a certa altura uma bela mulher a acompanhá-las. Uma comédia sobre a vagabundagem com doses de escrotidão, a bordo da qual nos encontramos – o que é muito provável – encantados por seus seres livres.

Jean-Claude (Gérard Depardieu) é o mais falante, o mais feliz; Pierrot (Patrick Dewaere) com frequência se cala, observa a continuidade da aventura, enfurece-se com o que sai errado e sugere, perto do fim, em nova viagem a local algum, que talvez devessem parar. É a quase exceção nesse conjunto de intenções que visa o caos, a balbúrdia, o sexo.

Parar com tudo é recuar à chamada “vida normal”. Os vagabundos nascem na tela como anormais, desleixados, brincalhões, correndo atrás de uma mulher com as compras na mão nos primeiros instantes do filme de Blier. Uma senhora qualquer que pretendem atrapalhar ou com a qual fazer sexo descompromissado. Parar não combina com eles.

A cena seguinte dá-nos a consequência: um grupo de homens persegue os dois pela rua, depois por um terreno. As gags são moldadas a elipses que permitem entender o que ocorreu. A comédia é ágil em filtro sujo, com situações eróticas típicas de filmes adultos, mas encampadas por rapazes que sucumbem a uma naturalidade estranha, a uma deformação imprevista, estranhos lampejos de consciência.

Quando fazem sexo com a então frígida Marie-Ange (Miou-Miou), por exemplo, o diálogo suplanta a ação dos corpos, a câmera prefere, por momentos, quem está ao lado e não quem está sobre a garota. E quando ela fica imóvel, como se à espera de mais sexo, mais movimento, Pierrot põe uma questão inacreditável: “já ouviu falar de pudor?”.

Para Blier, em roteiro co-escrito com Philippe Dumarçay, seus seres sem rumo, nascidos de qualquer ponto, para qualquer outro, ainda podem ser confrontados por alguém que lhes serve apenas com a carne, pela sugestão dos corpos mecanizados, pela parte sem vida que não querem ser. Percebemos que, a despeito de toda idiotia ou nulidade, a dupla é seguida por uma excesso de alma, fruto de um cineasta que ama suas personagens.

O problema dela será também o problema deles. O que dá sentido às suas existências é o orgasmo. E ela, até certa altura visualmente distante desses homens, aceitando suas grosserias e até seus gestos violentos, só poderá encontrar o verdadeiro desejo sexual nos que precisam aprender, não naqueles que, como eles, sabem muito sobre as alegrias da cópula.

O momento em que ela revela sua descoberta é extraordinário. Blier avança com a câmera à menina de cabelo e corpo molhados, entre eles, à beira do rio. Vemos o amor livre e, naquele momento, uma vida ainda equilibrada. A reação deles contrapõe o sentido profundo que ela dá ao acontecimento, seguido pelo belo movimento de câmera. Eles precisam retornar ao que sempre foram, ao descompromisso, ao confronto, e jogam a mulher no rio.

Como muitas personagens da nouvelle vague, os amigos aceitam os acidentes, dispensam o destino. Ao médico que costura o testículo de Pierrot, Jean-Claude diz que ambos possuem muita sorte. “Tudo o que tocamos transforma-se em ouro.” Desprezíveis com frequência, são autênticos e têm lá seus princípios, filhos de um cinema deliciosamente incorreto.

(Les valseuses, Bertrand Blier, 1974)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Os Companheiros, por Salvyano Cavalcanti de Paiva

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s