Renoir: “Eu esperava que o retrato dessa sociedade nos fizesse amá-la, por mais delinquente que isto possa parecer”

Eu me divirto bastante falando sobre A Regra do Jogo porque ele é, obviamente, de todos os filmes que fiz, o que teve o maior fracasso. Quando foi lançado, A Regra do Jogo se tornou um perfeito fiasco! Eu já tive alguns insucessos em minha vida, mas jamais um fiasco como aquele! Foi um absoluto desastre. Um dia, não faz muito tempo, mostrei A Regra do Jogo a um público de jovens nos EUA, em uma escola de Nova Iorque. E alguns jovens tinham ouvido falar da recepção de A Regra do Jogo em Paris e um deles me perguntou: “Diga-me, Sr. Renoir, por que podemos dizer que A Regra do Jogo é um filme controverso?” E eu respondi: “Escute, senhor, este filme pode ser visto como controverso somente por uma razão: à estreia do filme no Coliseu, eu vi um cavalheiro, um espectador, que, muito a sério, enrolou um jornal, sacou uma caixa de fósforos, ascendeu um e botou fogo no jornal com a intenção absolutamente evidente de pôr a sala em chamas. Bem, acho que um filme que provoca reações como esta é um filme controverso”. Fiz este polêmico filme em 38, 39. Eu não o fiz para fazer um filme controverso, acredite em mim. Eu não tinha nenhuma intenção de chocar a burguesia, só queria fazer um filme, queria mesmo era fazer um filme agradável e que ao mesmo tempo fosse uma crítica de uma sociedade que eu considerava como decididamente podre. E que continuo a considerar decididamente podre, porque esta sociedade continua a mesma, ela não cessou de nos levar a muitos pequenos desastres. Bom. Dito isto, como eu desejava um filme adorável, A Regra do Jogo foi inspirado em um autor, um ser amável, um ser impossível de não ser amado. Eu me inspirei em Musset. Les Caprices de Marianne era minha fonte, mas que fonte distante! As semelhanças são extremamente vagas, mas há algo em minha intriga que lembra Les Caprices de Marianne. É sempre preciso ter um ponto de partida. Digamos, então, que Les Caprices de Marianne foi o meu ponto de partida.

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A Regra do Jogo correspondia também ao meu desejo de voltar ao espírito clássico, ao meu desejo de escapar de A Besta Humana (La Bête Humaine, 1938), do naturalismo, de escapar até mesmo de Flaubert. Ao meu desejo de encontrar Marivaux, Beaumarchais, Molière. É muito ambicioso, mas gostaria de salientar, meus queridos amigos, que se a ideia é ter mestres, que eles sejam os melhores. O que não significa que nós nos comparamos a eles, isso simplesmente quer dizer que os temos como modelos.

Ou seja: era uma tentativa de um trabalho mais clássico, que eu conjugava com música clássica, que eu fiz ser interpretado um pouco como commedia dell’arte, uma pantomima de alguma forma, e os meus personagens eram personagens extremamente simples, mas que simplesmente levavam suas ideias às últimas consequências, até a gênese de seus pensamentos. São personagens francos. Eu esperava que o retrato dessa sociedade nos fizesse amá-la, por mais delinquente que isto possa parecer, porque esta sociedade tem pelo menos uma vantagem: ela não usa máscaras.

Então, quando A Regra do Jogo estreou em julho de 1939 no Coliseu – eu já contei a história do homem e seu jornal -, muitas pessoas queriam quebrar as cadeiras. Eu estava presente em algumas destas exibições e posso dizer que é o tipo de coisa que machuca o coração. Você pode dizer que não se importa, mas não é verdade, todos nós nos importamos. É horrível ouvir as pessoas assobiando na sua direção, cobrindo-o de insultos. Eu fui copiosamente insultado por causa de A Regra do Jogo.

Tudo isso aconteceu. Eu fui bem recompensado recentemente, mas não esqueci o que aconteceu… O que eu queria dizer é que, por causa destes assobios que me rasgavam o coração, decidi cortar o filme e, por isso, a versão inteira e completa de A Regra do Jogo não existe mais. Quer dizer: existe algo próximo a isto, e espero que seja essa versão que vocês vão ver agora. Ela foi restaurada aos cuidados de alguns técnicos que conseguiram encontrar alguns negativos, revelaram o positivo e fizeram uma cópia completa. Só falta uma cena nesta restauração, uma cena muito importante. É uma cena com Roland Toutain e que trata do interesse sexual da empregada. Você vê, é muito importante!

Eu disse que fui bem recompensado mais tarde. Na verdade, faz três anos. Eu estava em Veneza e as pessoas do Festival de Veneza, muito gentilmente, tiveram a ideia de exibir a cópia completa que tinha acabado de ser reconstituída em seu salão principal, ao meio-dia. Eu estava lá e tive o prazer de ver a sala abarrotada de gente, muitas pessoas em pé, sentadas nos degraus, e todas aplaudiam muito. Eu me senti um pouco como que vingado pelos insultos de 1939.

Jean Renoir, cineasta, em depoimento para a série de televisão Jean Renoir vous parle de son art (reproduzido no catálogo da mostra A Vida lá Fora: o Cinema de Jean Renoir, CCBB; pgs. 385-388).

Veja também:
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