As faces escapam, alternam-se. Um grupo de pessoas caminha sem rumo. As imagens em preto e branco surgem no início, pouco antes dos créditos, e retornam ao fim. Descobrimos que foram feitas por um cientista. Há um filme dentro de outro. O cientista registra experiências que envolvem seres humanos confinados à dor e sob o efeito de drogas; e reflete sobre o que esperar (ou não) dessas pessoas anônimas entre a multidão, povo apático, rendido, impossibilitado (ainda) de fazer algo na Alemanha de 1923.
As considerações são dadas pelo cientista Hans (Heinz Bennent) em O Ovo da Serpente, lançado em 1977. O encerramento do grande filme de Ingmar Bergman apoia-se nas palavras. Não há exatamente um grande evento dramático, ou uma face de dor, envolvendo as personagens. Não como vimos em tantos outros filmes do diretor sueco.

Está nas palavras de Hans a explicação para o “ovo da serpente”, o que os alemães eram e no que se tornariam dez anos depois, com a chegada dos nazistas ao poder: a consolidação da lógica frente à emoção, de um sistema de poder totalitário, de ódio, de pessoas – jovens e crianças de 1923 – que se levantariam contra a miséria e o caos econômico.
Sabemos o que tudo isso gerou. Bergman dá-nos outra visão, a de um homem miserável, um trapezista alcoólatra, Abel Rosenberg (David Carradine), que se torna parte de uma experiência e, passo a passo, entre ruas sujas, úmidas e de paralelepípedos, entre escritórios, delegacias e cabarés, entre festas e desolação, tenta se manter vivo.
Ovo da Serpente aborda o nazismo pela colisão de dois olhares: o do artista e o do cientista, o do homem que nada sabe e descobre ser parte de uma experiência científica e o do cientista que se julga capaz de prever o futuro antes de tirar a própria vida. O primeiro pode contar apenas com si mesmo, com seu instinto de sobrevivência; o segundo, apesar da estrutura que o recobre, apesar da ciência que lhe dá certezas, acredita estar à frente de seu tempo. Por isso não pode viver no tempo que não lhe cabe, que não está pronto para suas descobertas.
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E o que descobre o cientista? Que haverá um rompimento, que já é possível ver a serpente através da membrana do ovo. “A velha sociedade era baseada em ideias extremamente românticas sobre a bondade do homem. Era tudo muito complicado, já que as ideias não correspondiam à realidade”, observa ele, o tipo de cientista que depois receberia carta branca dos nazistas para estudos envolvendo seres humanos. “A nova sociedade será baseada em uma avaliação realista do potencial e das limitações do homem.”
Para esse cientista, “o homem é uma deformação, uma perversidade da natureza”, o que justificaria as experiências que realiza, com o confinamento de pessoas. Ele mostra as filmagens para Abel. De novo, para Bergman, entra em jogo o registro de imagens através da película, experiência crua à qual se converte sua máquina de sonhos que é a câmera: a mulher com o bebê que não para de chorar; um homem privado do som; um homem submetido a uma droga, angustiado e levado ao suicídio.
A câmera não mente. Abel assusta-se ao ver tamanha perversidade em nome da ciência. Para Bergman, um sistema totalitário consiste, primeiro, na eliminação do que há de romântico – ou do humano como conhecemos, de fraquezas e empatia – pela lógica, na vitória de uma ciência (nazista) que consiste em eliminar fracos e privilegiar fortes.
Essa história é vista pelo olhar de um homem fraco. Ou menos: de Abel nem chegamos a ter um olhar. Temos suas pernas, seu corpo, sua vida cambaleante por uma Alemanha na qual ele, trapezista judeu, terminou alojado com o irmão. O problema é que o irmão é encontrado morto na primeira cena do filme. Deu um tiro na boca. Abel está sozinho e procura pela viúva do outro, cantora de cabaré interpretada por Liv Ullmann.
Pelas ruas, Abel vê pessoas comendo cavalos mortos, policiais que permitem o espancamento de judeus por gangues que se julgam protetoras da moral e dos bons costumes. Em uma cena brutal, homens desse mesmo grupo invadem um cabaré e espancam seu proprietário. Abel assiste à violência sem saber o que fazer – sem forças para reagir ao que está dado.
Abrigado em uma casa com a viúva do irmão, ele crê ouvir estranhos barulhos vindos de fora – ou de dentro, de algum espaço em que a própria casa parece ter vida. O clima é kafkiano. Voltam os corredores abarrotados de documentos, o Estado que trancafia homens distantes do sol, as experiências que nos levam a pensar em 1984 de Orwell.
A um padre (James Whitmore), a personagem de Ullmann diz que “a única coisa de verdade é o medo”. Não há saída possível: este é um filme sobre a antessala da tragédia. Apenas uma de suas personagens, o trapezista, conseguirá atravessar o espelho para encarar o que pode ser a realidade – ou a realidade traduzida por um louco, o homem da lógica.
Voltamos ao cientista. E até ele faz previsões erradas. Hans refere-se a Hitler como alguém com pouco cérebro. É nesse ponto que o roteiro de Bergman joga com a fragilidade da ciência, que não levou em conta a capacidade de um líder excêntrico com ideias tortas e limitado de sobreviver à tempestade que ele próprio criou.
A revolução que o cientista previu terminou no extermínio de milhões de inocentes em campos de concentração, na perseguição das liberdades individuais e em uma guerra mundial que matou mais alguns milhões. Mal movido por um louco que alguns relutaram em levar a sério, alguém que soube captar a fragilidade e a impaciência daqueles que viram o dinheiro de seus pais e conterrâneos ser reduzido ao preço do papel.
(The Serpent’s Egg, Ingmar Bergman, 1977)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
