Não! Não Olhe!, de Jordan Peele

Como um touro descontrolado, um urso em ataque ou um símio enlouquecido, os alienígenas de Não! Não Olhe não gostam de ser observados. Nem de estar no centro de uma redoma a serviço de nosso entretenimento. O filme de Jordan Peele inicia com um chimpanzé em um estúdio de televisão, após matar algumas pessoas. Nada aleatória, a cena – brutal e bizarra – ajuda a compreender o que vem depois.

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Ao contrário do que têm dito alguns críticos, Não! Não Olhe não é diferente dos outros dois filmes de Peele: em todos, o cineasta investiga – pelas vias do fantástico – nossa relação com o horror que produzimos, algo que até certa altura tentamos negar. Em Corra!, o hipnotismo dos negros feito pelos brancos; em Nós, o incômodo reflexo dos duplos, então aprisionados, que tomam forma e escapam para nosso universo.

A distância entre as personagens e o mal que precisam combater é, em Não! Não Olhe, aparentemente maior. Só aparentemente. O protagonista OJ Haywood (Daniel Kaluuya) e sua irmã Emerald (Keke Palmer) começam a presenciar situações estranhas no rancho em que vivem, no qual criam cavalos alugados por estúdios de Hollywood.

Eles percebem que há algo entre as nuvens, uma estranha força que sequestra animais e pessoas e cospe sobre nós os restos indesejados, como metais e esculturas. São alienígenas que se camuflam na natureza e fazem com que as nuvens não se movam; são monstros – ou um só – que nos observam e não querem ser vistos.

Quando as personagens passam a observá-los e até a oferecê-los a um espetáculo com plateia, o alien-animal rebela-se e confronta. O filme de Peele toma decisões arriscadas, assume alta velocidade e ainda encontra brechas para explicar o drama das personagens. É como um filme de Spielberg refeito por Tobe Hooper ou John Carpenter, um parque de diversões macabro ao qual somos presos e não temos esperanças de escapar.

Estamos de novo na pele da menina perdida da abertura de Nós. Até certa altura, outra vez ao lado do rapaz levado à bela casa da família branca de Corra!, em que estranhos incidentes desafiam nossa crença nos seres humanos. Voltamos ao estúdio de televisão, àquela velha mania de reviver a vida impossível, feliz, dos sitcoms – interrompida pelo animal que habita em todos, representado pelo que fomos, o símio enlouquecido.

A imagem persegue. O animal caminha para encarar o único sobrevivente da matança: sob uma mesa está o menino que observa o bicho, o selvagem, que ainda aproxima sua mão à do outro, como se o contato ainda fosse possível. Como o de um homem e um alienígena, como aquele que Spielberg celebrou em seu E.T.: O Extraterrestre.

O mesmo menino, crescido, continuou a servir ao espetáculo: volta, mais tarde, na pele de Steven Yeun, ao papel do agitador de auditório, também no meio do deserto. Ainda guarda, como em um templo, as peças do sitcom que terminou em tragédia, espécie de museu particular no escritório de seu parque de diversões. Ele compra cavalos de OJ para alimentar o alienígena e agarrar a atenção de seu público pagante, voltado à arena.

Peele trata da obsessão humana por transformar tudo em espetáculo. A natureza que servimos como entretenimento passa a nos caçar. Ousamos observá-la, filmá-la, prendê-la às nossas câmeras – e ela, com poderes superiores, pode retirar de nós a energia elétrica, pode nos lançar à escuridão, fazer do dia a noite, da quietude do campo o local do furacão.

Somos animais escravos do olhar, do fetiche ao qual ele conduz. Evoluímos. Celebramos a aventura, o mal, o selvagem – desde que este esteja a alguns metros, ou na telinha, e desde que não se volte contra nós. A natureza é alheia a esse pacto que tentamos levar à frente desde que começamos a pintar paredes de cavernas.

É da família de OJ o primeiro cavaleiro a aparecer em uma imagem em movimento, de autoria de Eadweard Muybridge, de 1872. O cinema como conhecemos ainda não existia. O que se viu foi uma experiência com fotografias em sequência e a impressão de movimento. A família de OJ continuou a servir às imagens e, ao enfrentar o desconhecido, aprendeu que o equilíbrio entre nós e ele depende do olhar – ou do não olhar.

(Nope, Jordan Peele, 2022)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Corra!, de Jordan Peele

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