O esporte proporciona um pouco de justiça aos desvalidos. Em seus limites, como no ringue de boxe, valem o esforço e a ação individual ou coletiva. Não há – ou não deveria haver – espaço para dúvida. Em Cidade das Ilusões, as personagens dedicam parte de suas vidas ao boxe, ao prazer e à excitação do combate. Entre lutas, bebem, fogem, casam, endireitam ou se perdem de vez. Vão e voltam. E continuam a falar delas com fascínio.
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Apenas o ringue concede algum momento de glória a esses homens pobres. Assistimos aos seus tropeços e instantes ordinários, do lado de fora, em bares ou em veículos apertados. Pouco importa ganhar ou perder nesse filme de John Huston. A relação com o esporte é outra: tem a ver com fazer parte, encontrar um significado.
O filme é ambientado em Stockton. Tem roteiro de Leonard Gardner, a partir de seu próprio livro. Huston saca espaços reais, gente simples e sem qualquer glorificação – nem a do golpe no ringue, menos ainda do lado de fora. Suas lutas são cruas. Suas personagens centrais perdem fácil ou ganham sem saber que ganharam. É uma história de tombos.
O protagonista é o boxeador Tully, vivido por Stacy Keach. Ele tem um passado. Entre tantos homens e mulheres reais pelas ruas da cidade, ele circula como parte natural do meio. Sai de seu quarto, ao lado de algumas garrafas de bebida, e segue para um ginásio para dar alguns socos, treinar, fazer o que não fazia há algum tempo. Como todo lutador de boxe em declínio, na casa dos 30 anos, acredita que ainda pode dar a volta por cima.

No ginásio ele encontra Ernie (Jeff Bridges), bom com os socos, rápido, sem ter experimentado ainda uma luta real. Sequer teve a oportunidade de ser treinado. Tully elogia a performance do rapaz e indica seu antigo treinador, Ruben (Nicholas Colasanto), o qual o mais jovem logo vai procurar. Ao saber que a indicação é de Tully, Ruben aceita o novato na hora; manda-o para o ringue, onde ganha um corte na testa.
O filme de Huston estrutura-se nas caminhadas paralelas – que se tocam em alguns momentos-chave – de Tully e Ernie. É a história de duas pessoas diferentes que em momentos se apoiam – quando, por exemplo, o mais velho ajuda o mais novo a conseguir um dia de trabalho na colheita de frutas – e em outros tentam se afastar – como no encerramento, quando Ernie finge não ver o colega, sujo e embriagado, à noite, pela rua.
Ambos são rendidos pela camaradagem. Tully não tem mais ninguém; Ernie casou-se, tem filho, continua lutando. Nenhum deles tornou-se um grande boxeador. Sabemos desde o início que isso não significa nada para Huston: em Cidade das Ilusões, o esporte é apenas a alavanca para um significado, para ser alguém nessa sociedade de divisões, de brancos e negros, de pessoas desesperadas que se escoram em balcões de bares, em jogos de carta, ao som da jukebox. Pessoas como Tully, como Oma (Susan Tyrrell).
É dela algumas das frases mais fortes. Um desabafo no momento em que é encontrada por Tully encostada em um balcão. Ela sofre: acabou de perder o companheiro, um homem negro que, segundo a mesma, foi preso por ser negro. “Você não sabe o que se tem de passar quando se está em uma relação interracial. Todo vagabundo na rua tem que dar uma olhada em você”, afirma ela, com o zíper da blusa parcialmente aberto nas costas.
Tully tenta ouví-la. Como ela, procura alguém e talvez não saiba. Apoiam-se no outro. Ela segue com lamentações e nos dá um pouco de sua história: já foi casada com um índio (morto a tiros) e depois com um branco. “A raça branca está em declínio. Ela começou a desaparecer em 1492, quando Colombo descobriu a sífilis”, pontua a mulher, antes de Tully afirmar, mais de uma vez, que ela pode contar com ele. Vão embora juntos.
Ela cabe na vida dele só até certa altura. À frente, ele conquista outra luta, ela retorna aos braços do amante negro recém-saído da prisão. Eles não cabem mais na vida de ninguém a não ser na das mesmas e poucas pessoas que ainda os aceitam, e a elas retornam: amantes de ocasião, treinadores, amigos de bar. Huston, com fotografia realista de Conrad L. Hall, lança-nos em um universo no qual o sentido escapa-nos, e nos impõe sempre a derrota que sucede outra derrota. Até o fim, nenhuma dessas pessoas desiste.
Fascina-me aqui muitas coisas. Uma delas é o movimento de câmera perto do fim, o olhar de Tully para a mesa de jogos quase toda composta por homens negros no interior de um bar. É como se Huston dissesse a nós que aquele momento é o único em que realmente somos levados ao interior do protagonista, do qual foi retirado apenas um instante do olhar à vida comum, à vida de todos os dias, de alguém que – a despeito de tudo o que perdeu, do alcoolismo, da sujeira na qual está mergulho – ainda enxerga a realidade. Um meio de homens, de relações baseadas em disputas, de tentativas de se superar, de alienação.
(Fat City, John Huston, 1972)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Os Desajustados, de John Huston