No início dos anos 1940, quando o mundo entrava em uma nova guerra mundial, talvez não fosse a melhor ideia dar protagonismo a um pequeno ditador, um falso juiz que tomou uma terra para si, matando quem o contrariasse. Para o público, antes do Roy Bean de Walter Brennan, oferecia-se o pistoleiro bondoso de Cary Cooper.
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No início dos anos 1970, quando todas as máscaras haviam caído e os Estados Unidos estavam atolados no Vietnã, Roy Bean seria a personagem de uma quase comédia sobre a formação de um território, de uma nação. Para o público, um homem com todos os seus defeitos, com Paul Newman a vivê-lo, escondido sob a barba avantajada.
Observar as diferenças da mesma personagem em tempos diferentes é um exercício interessante. O Galante Aventureiro, de William Wyler, oferece-nos Gary Cooper o tempo todo, leva às nossas faces o herói americano, mas terminamos preferindo o Roy Bean incorreto, inocente, estranhamente malvado de Brennan, esse ator gigante.

Sem ele o filme não tem quase nada, ou nada, a oferecer. Brennan é um velhinho sem forças aparentes e que toma todas as armas para si. Convence, envolto em estrutura falsa, que pode ser o líder de uma milícia. Quando chegamos a ele, no início do filme de Wyler, seu reino está formado. Ele julga e enforca criminosos como bem entende; seu tribunal é posto sobre a mesa do bar e seus pistoleiros dão corpo ao júri.
Cooper é a visão de que nem tudo pode ser mau. O cavaleiro solitário ainda não se corrompeu. Contra Bean e seus homens, favoráveis à criação de pastos sem divisórias, está uma comunidade de pessoas honestas que planta milho. A questão da terra opõe Bean a essas pessoas. Cole Harden (Cooper) surge entre os dois lados e tenta fazê-los dialogar.
O herói é acusado de ter roubado um cavalo. Não é verdade. O problema é que ele dificilmente conseguirá provar sua inocência no tribunal de Bean, que mata por esporte. Harden observa que o bar-tribunal do juiz está forrado de fotos de Lily Langtry, sua musa, uma atriz inglesa que nunca deu as caras por lá. No pequeno mundo de Bean ela terá um altar para ser adorada. Harden mente, diz que a conhece. Ganha a atenção do juiz.
Tivesse tentado o mesmo com a versão de Paul Newman, a de Roy Bean – O Homem da Lei, certamente teria fracassado. Na pele de Brennan, ele é um idiota que crê em si mesmo, que no fundo acredita em seu reinado e em sua “justiça”; na de Newman, um aproveitador que veste uma personagem, o juiz como o diretor de um espetáculo risível que tem ao centro do palco a forca. Mais tarde, quando a civilização parece enfim ter chegado ao local, ele é mitificado: seu palco torna-se museu.
Se na visão de Wyler o Velho Oeste ainda guarda a luta dos homem estreito contra as forças que alienam o povo, as do criminoso contra pessoas honestas que desejam se estabelecer em um território, na de Huston reina o niilismo, um Velho Oeste de beberrões e prostitutas, de jogadores e homens sujos que empunham uma suposta Constituição sempre a favor de um papel, e no qual o aspecto envelhecido e desbotado traduz a decadência.
A história americana, diz Huston, com roteiro de John Milius, é uma história de farsantes. O cineasta aposta na comicidade em filme curioso, com mais altos do que baixos, e certamente dribla a podridão preservada na fonte de Milius, também roteirista de Apocalypse Now, baseado no livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad.
Milius mostra como o estabelecimento de um reinado – como em Apocalypse Now – vem acompanhado do pior de seus pares, os americanos. Em Roy Bean, trata-se de um farsante que ocupa o lugar de alguns criminosos em prostíbulo isolado, cercado por mexicanos miseráveis. Após roubar alguns bancos, esse farsante termina ali, no meio do nada, fitado por mulheres estranhas, e quase é morto ao ser arrastado por um cavalo.
Com a ajuda de uma moça mexicana (Victoria Principal), ele recupera sua arma, volta ao mesmo prostíbulo e se vinga dos criminosos. Toma o lugar dos outros e sabe que o refúgio, a exemplo de tantos espaços de poder, precisa ser reinventado: o lugar que antes servia de esconderijo será agora o começo de algo, e ele será o seu juiz.

Huston leva a sério demais a falsidade. Em muitos momentos a comédia é maior. O que deveria soar como crítica termina se perdendo – em algumas partes, não exatamente no todo – como peça indolor. A falsidade da personagem estende-se ao filme. A passagem do tempo e a chegada do que parece ser o mundo real tornam Roy Bean uma lenda; nunca saberemos quem ele foi de verdade e se realmente existiu.
Na versão de Wyler, o falso juiz tem a oportunidade de se encontrar com Lily Langtry. Ela fará um espetáculo em uma cidade próxima. Bean compra todos os ingressos do espetáculo e vai sozinho assisti-lo. Quando as cortinas são levantadas, está no palco a personagem de Gary Cooper, seu oponente. Tem início um confronto no interior do teatro.
A versão de Huston também aborda a ida de Bean ao espetáculo de Lily e é mais interessante. Ao chegar na bilheteria do teatro, o falso juiz é avisado de que os ingressos acabaram. Ele tenta comprar de outras pessoas e não consegue. O mundo real ganha terreno: o poder de Bean e seu dinheiro não funcionam fora dos limites de seu reino. Atraído pelas mentiras de um escroque, ele é roubado e não assiste à apresentação da adorada Lily.
Com Wyler, o Oeste ainda resiste. A plantação de milho ocupa o último quadro e, em preto e branco, obriga-nos a imaginar seu brilho. O mundo perdido de Huston cede à modernidade: vêm a estrada de ferro, os políticos, os gângsteres, suas metralhadoras, a polícia e o Estado. Entocados, os mitos do passado – fantasmas que retornam à mesa de jogos, Bean entre eles – lutam contra os novos exploradores. O ouro agora é o petróleo. O que resta do falso juiz, do pequeno ditador, desaparece no ar, é lenda. Para ela, um museu.
(The Westerner, William Wyler, 1940)
(The Life and Times of Judge Roy Bean, John Huston, 1972)
Notas:
O Galante Aventureiro: ★★★☆☆
Roy Bean – O Homem da Lei: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
Os Desajustados, por Antonio Moniz Vianna