Os Desajustados, por Antonio Moniz Vianna

Talvez não se encontre outro filme moderno em que se faça uma combinação de personalidades famosas – e com as implicações mais variadas – como The Misfits. O primeiro filme escrito por Arthur Miller para Marilyn, o último de Clark Gable, o filme que teria causado o divórcio do século – todos esses títulos, que não se excluem uns aos outros, cabem realmente a esta obra. Não serão os mais válidos – nem valem coisa alguma do ângulo crítico ou cinematográfico. Mas, nessa área, seria difícil achar um de que o filme se vangloriasse. Note-se como esteve sempre na sombra, em todo o processo de realização e lançamento ou repercussão da fita, quem oficialmente (mas só oficialmente) é o seu autor – e, por sinal, alinha-se há muitos anos entre os mais importantes cineastas. Com a omissão de seu nome em tudo o que fez a popularidade de The Misfits, não pode John Huston queixar-se de má sorte.

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Não deve desejar outras ligações com este filme se não as de superfície profissional um diretor que tem títulos como The Asphalt Jungle (O Segredo das Jóias) e The Treasure of Sierra Madre. Pois o certo é que, comparado mesmo aos raros filmes de Huston sem maiores qualidades, The Misfits ficará, no mínimo, com um complexo de inferioridade. Pela primeira vez, até, vemo-lo dominado: Huston limita-se a ilustrar Arthur Miller, e só em um ou outro instante (a cena de Marilyn jogando raquete) e na longa sequência da captura dos cavalos selvagens, confere à narrativa uma intensidade cinematográfica. Nessa sequência, infiltra-se sub-repticiamente, e só por vezes discernível, a tese desenvolvida pelo cineasta em The Roots of Heaven (Raízes do Céu). Não emerge, porém, nenhum conceito filosófico do plano ético em que se situa a heroína, opondo-se e, no fim, impondo-se aos caçadores que são mais inconscientes (como ela própria, em seu impulso contrário) do que impiedosos. Vale a sequência pelo ritmo, por uma espécie de convulsão dos homens, que se igualam aos cavalos em selvageria, vencendo-os segundo a lei da jungle – que é a lei do mais forte. Aí se reencontra por momentos uma das constantes hustonianas, a constante cética (filosófica) que o leva a não distinguir a jungle africana, a das montanhas do México ou esta, no deserto de Nevada, da outra jungle, asfaltada, a das grandes cidades das nações mais civilizadas, onde igualmente a lei suprema é a lei do mais forte.

A dominação de Huston por Miller se fez sem conflito ostensivo – entre sorrisos de instantâneos de filmagem (o autor vigiava menos sua mulher do que sua história). Era insolúvel o conflito, sem que alguma coisa – o filme, no caso – desabasse. Dois temperamentos, dois espíritos, duas condutas opostas e irreconciliáveis. Expressando-se no dialeto de Brooklyn, estreito e sombrio, Miller não poderia comunicar-se com um caráter aberto e universal como o de Huston – assim como não o entendeu nunca Marilyn. A Miller não se discute o talento dramático demonstrado por vezes, como em Death of a Salesman e The Crucible (ou no título apócrifo porém mais vulgarizado de Les Sorcières de Salem). A observação de uma realidade à mão, ou até a capacidade de alegorizá-la, aí encontra o artista Miller o seu teto. Jamais a personalidade suburbana do teatrólogo despertaria interesse mais profundo a um homem como Huston, inconvencional com o parti-pris da aventura. Por isso, exatamente, é que o diretor não pôde sintonizar o seu estilo com o da história – porque esta é não-conformista somente na superfície, e o máximo que atinge ainda é um pseudo-anarquismo à custa de quatro “desajustados” aos quais Miller consente mais ou menos as mesmas reações que deve ter examinado (até em filmes) no fenômeno social mais conhecido como o da “juventude transviada”. Nenhum de seus “desajustados”, no entanto, estaria fisicamente bem situado entre os epígonos de James Dean ou a corrente francesa dos blousons noirs.

***

Primeiro um conto publicado em “Esquire”, The Misfits (Os Desajustados) foi reformado e esticado por Arthur Miller neste seu primeiro ensaio como screenwriter. A experiência, embora mal sucedida, é curiosa. Até seu casamento com a super-estrela, as relações do teatrólogo com o cinema foram platônicas – limitadas à cessão dos direitos de filmagem de suas peças: Ali My Sons (Irving Reis), Death of a Salesman (Kramer & Benedek) e Les Sorcières de Salem (Raymond Rouleau, extraída de The Crucible). Por influência de Marilyn, meteu-se Miller nos estúdios já como observador em Let’s Make Love (Adorável Pecadora). Com o divórcio, terá mais tempo para escrever peças, e seu afastamento do cinema parece provável. Será melhor para todos, apelo que The Misfits nos mostra. Entretanto, Miller não se decepcionou com sua nova obra – ou teria sido outro o motivo que o levou a publicá-la em livro (“escrito em forma não familiar, nem novela, peça, nem screenplay”), que, com Marilyn, Clark Gable e Montgomery Clift na capa, tinha praticamente tudo, inclusive o preço de 50 cents (pocket-book), para alcançar milionária tiragem.

O filme pode ter agradado a Miller e àqueles que ainda não rejeitaram, por inexistente, a filosofia de certa parte do teatro americano da década que sucedeu à guerra. Uma linha radicalmente americana é apontada para pequenos aspectos da vida fora das grandes cidades, vistas por habitantes da metrópole – não é outra a que The Misfits segue. O seu “anarquismo” não é, todavia, como o que se pode perceber em Bus Stop (Nunca Fui Santa): uma certa espontaneidade conseguida por William Inge cava a diferença entre as duas histórias, porque Miller jamais se desvencilha do seu parato de intelectual, ou da pose do pensador que exulta por haver feito descobertas. Alguém o viu, em The Misfits, “atravessar a legenda do cowboy para uma visão profunda de sua alma – a alma de arcaico individualismo no século vinte”. É possível que o autor tenha partido de um conto mais ou menos escapista para o rumo de área tão complexa. Se não se conhecesse bem o diretor do filme e não fosse clara a sua submissão às linhas da história, seria o caso de dizer que as intenções de Arthur Miller haviam sido traídas ou incompletamente exploradas pela câmera. Assim, toda aquela complexidade teria sido apenas intenção.

Pouco se poderá dizer de John Huston, sendo The Misfits, entre os quatro ou cinco filmes do cineasta, o que mais o esconde, a ponto de não diferenciar-se muito o estilo narrativo do de um Joshua Logan (ainda atuando sobre o crítico a lembrança, aliás igualmente marilynizada, de Bus Stop). O grande diretor de Moby Dick não se apagará por isso, como talvez esteja advertindo seus admiradores ao mudar bruscamente o tom da narrativa na sequência da caçada dos cavalos selvagens. Já no final de The Misfits, é a única que condiz em alguma coisa com sua personalidade. Até alcançá-la, só em dois ou três momentos – a dança em que os “desajustados” repartem o corpo macio e a leve embriaguez de Marilyn; ou o crescendo do jogo de raquete no botequim, quando Marilyn, eufórica, é objeto de apostas e o alvo de palmadas – só nessas cenas Huston não dá a impressão de estar indiferente aos acontecimentos. No mais, e especialmente no “pensamento” de The Misfits, ele se afasta, educadamente, e dá a palavra para Miller, o autor.

A maior parte da ação corre ziguezagueando, em Reno. (O filme começa com um divórcio e provocou outro, após o derradeiro fade-out: livra-se Marilyn de Kevin McCarthy, na história, e do teatrólogo que já não era visto com bons olhos a seu lado. Seus fiéis a aplaudem duplamente.) Livre, Marilyn se agita, como num mundo novo, e se deixa disputar por três homens, dando-lhes carinho e, não na mesma proporção, o amor que não tarda a favorecer um veterano e cínico cowboy, o papel (último) de Clark Gable. São os outros: um ex-piloto de guerra, viúvo e companheiro de Gable em biscates diversos (Eli Wallach) e outro cowboy, o mais jovem do trio (Montgomery Clift), que o complexo de Édipo, exaltado pelo segundo casamento da mãe, atirara à vida nômade e ébria, no Oeste, onde pode ganhar o dinheiro para os drinks em exibições de rodeio.

Uma mulher e três homens (às vezes, Thelma Ritter faz um quinteto, com sua presença alcoviteira) – e todos não têm profissão definida, nem a coisa alguma se deixam prender por muito tempo, salvo a recordações que invariavelmente refletem uma frustração, um remorso, uma deserção. As reações do Clift não são as únicas complexogênicas; talvez o personagem vivido por Wallach seja o mais neurótico em cena. E o desajustamento é geral. Só quem ignora o grau da influência da psicanálise sobre a intelligentsia da Broadway pode espantar-se diante do que Arthur Miller emprega com o intuito e a certeza de tornar seus personagens psicologicamente mais densos. A sombra de Freud – tão importante em área considerável do pensamento contemporâneo – proporciona resultados inesperadamente perigosos aos que se cobrem com ela para obedecer à moda ou executar algum plano. Os “desajustados” de Miller, em muita coisa, não diferem dos “transviados” de Brando.

Vale excluir do insucesso de The Misfits: 1) os títulos de plasticidade simbólica, com figuras que se “descombinam” num conflito permanente, revelando em George Nelson um discípulo de Saul Bass, o pioneiro; 2) Marilyn Monroe: nada ainda se mostrou capaz de sequer atenuar o ritmo, a harmonia, a claridade da mulher que simboliza até em duas letras a maior intensidade que o fascínio já alcançou no cinema.

Correio da Manhã (10 de junho e 2 de julho de 1961)

Veja também:
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