Um Tiro na Noite, de Brian De Palma

O movimento explica o filme todo: girando sobre seu próprio eixo, a câmera revela os espaços da sala, suas fitas e películas por todos os lados, suas máquinas, seu protagonista ora em campo, ora fora dele. Suas entradas e saídas, somadas ao giro, revelam a difícil sincronia entre o espaço e o protagonista, sua desorientação.

O herói é um cara comum, e a impressão é que o diretor Brian De Palma não o quer como um herói de verdade. O realizador conhece bem esse tipo frustrado que não consegue controlar por completo a tecnologia que o envolve. Jack (John Travolta) é sonoplasta de filmes B. Certa noite, atrás de sons do vento e da natureza sobre uma ponte, em local isolado, ele acidentalmente registra e presencia a morte de um governador.

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O som que sai de suas máquinas é claro: não se trata de um acidente de carro, como querem algumas autoridades, mas de um atentado à bala. O título original, Blow-Out, além de ser uma variação de Blow-Up, obra-prima de Antonioni, leva-nos à ideia do ar que escapa do pneu, ao sopro, aqui um som dúbio, entre medo e descompressão.

Sendo este um filme sobre cinema, podemos argumentar que a realidade pretende invadi-lo o tempo todo: contra o filme de terror do início, o grito falso da mulher que nos revela a ficção; contra o assassinato de um político influente com toques da paranoia, a reboque de Watergate, a presença de um assassino em série que nos leva ao cinema de gênero.

O filme todo é fincado nessas misturas. Para De Palma, o cinema não é um veículo de realidade, mas de imagem, de reinterpretação, de pessoas que precisam ceder à mágica dos malabarismos de câmera e montagem, dos tipos esquisitos e propositalmente caricatos, das prostitutas bobinhas que insistem em não enxergar o mal à altura do rosto.

Ainda assim, em algum momento a realidade pede passagem. O cinema, diz De Palma, capta e distorce pedaços do mundo real. Em Um Tiro na Noite, o produtor de filmes B precisa de um grito convincente para colocar em seu próximo filme. É necessário esperar o filme todo – o verdadeiro filme – para enfim encontrá-lo.

O grito – na cena em que De Palma outra vez volta a Hitchcock e seu Psicose – precisa ser real. Como bem observou Pauline Kael, trata-se de uma piada. “Um Tiro na Noite começa com uma piada; no final, a piada foi virada do avesso”, escreve ela em sua crítica na New Yorker. Secundária às aparências, a piada torna-se o pesadelo do herói.

Kael também observa a meticulosidade da personagem central em seu ofício: “Jack aponta seu microfone comprido e fino como se fosse um condutor com uma batuta evocando os sons da noite”. Outra vez, é De Palma em cena, de corpo e alma, conduzindo Travolta ao cinema como ato quase religioso, a encobrir a aparente prevalência da técnica.

O cineasta pode brincar com sua arte sem nunca ser desrespeitoso. Por sinal, é um dos ensinamentos que trouxe de Hitchcock: elevar essa arte não significa abrir mão, por exemplo, de uma piada. Ou em algum “filme sério” o equipamento eletrônico, colocado no corpo do homem que carrega o grampo, seria estragado pela transpiração em excesso?

Ao revelar peças políticas, intrigas e paranoia, De Palma brinca com a ideia de que apenas a ficção – o cinema – pode descortinar um país. Seu herói descobre sua maior frustração na festa do Dia da Independência, entre a folia dos embandeirados, os fantasiados de Tio Sam.

Ao contrário do protagonista de A Conversação, que é traído por pessoas, Jack é traído pela máquina. O grito da amada continuará a persegui-lo, como sugere o fade-out do encerramento. Para De Palma, passada a exposição da técnica, da aparente graça da abertura com seu grito falso, resta o grito real. O filme não termina na tela.

(Blow Out, Brian De Palma, 1981)

Nota: ★★★★☆

AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

Veja também:
Bastidores: Um Tiro na Noite

Um comentário sobre “Um Tiro na Noite, de Brian De Palma

  1. Meu filme preferido do meu diretor preferido. Um dos 10 melhores filmes da década de 80 e coloco fácil num top 10 da vida.

    Ótimo texto, como sempre.

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