Os laços entre irmãos não são claros. Não há cumplicidade. O tempo em que ficaram separados, somado aos diferentes perfis, traduz a primeira das várias dificuldades – mas também o motor do drama, por paradoxal que pareça – para embarcarmos em O Dia dos Loucos, o filme que Bob Rafelson realizou após Cada um Vive como Quer.
O anti-herói Robert Dupea ganhou corpo através de um Jack Nicholson explosivo, inconformado, sem lugar no mundo. O protagonista seguinte levado à tela por Rafelson, novamente na pele de Nicholson, é um homem estabelecido, conformado, pacato – é o oposto do outro, sem começo ou fim. É alguém que confessa tudo o que sente – e o que talvez tenha vivido – a quem quer ouvi-lo em um programa de rádio.

Esse confessionário – ao mesmo tempo fechado, ao mesmo tempo aberto – compõe a primeira cena do filme, o forte monólogo de David Staebler, um filósofo solitário, um aparente niilista que conta uma história de sua infância, quando ele e o irmão Jason teriam assistido à morte do avô, engasgado enquanto comia peixe. Dessa experiência triste teria surgido o principal laço entre ambos, a partir de uma história contada em detalhes.
Com a face parcialmente às sombras, não sabemos, de cara, onde está David. Para quem conta, ou por que detalha a experiência de morte que cruza sua infância. Surge uma luz vermelha. Ele está em um estúdio. O técnico de som acaba por interromper sua história. Ele fica bravo, pega seus pertences e volta para casa – onde vive com o avô.
O velho homem está vivo; a história antes contada no rádio, ao que parece, seria uma forma de unir o filósofo ao irmão que perdeu. Não tarda para que esse irmão apareça. Está em Atlantic City e pede que David viaje até lá. O homem solitário, noturno, de poucas palavras vê-se em novo caminho para, talvez, passados muitos anos, estabelecer com o outro o que nunca conseguiu: um laço. Todo o filme de Rafelson é sobre essa tentativa (silenciosa), entre algumas pessoas que vivem pelo absurdo, chamadas apressadamente de loucas.

David, o pacato, termina na órbita de Jason (Bruce Dern), o espalhafatoso, e na companhia de duas mulheres – a amante do irmão, Sally (Ellen Burstyn), tão desequilibrada e impulsiva quanto ele, e a enteada dela, Jessica (Julia Anne Robinson). O cenário é uma cidade acinzentada à beira do oceano, espécie de Europa decadente e um pouco esvaziada.
O irmão tem negócios com mafiosos. Diz que está prestes a concretizar a abertura de um hotel em uma ilha ensolarada longe dali. Sabemos que isso nunca ocorrerá; é apenas o pano de fundo para um filme sobre pessoas sem rumo. Ao nos lançar no corpo pouco agitado de David, Rafelson, com roteiro de Jacob Brackman, torna a experiência ainda mais difícil se comparada à nossa imersão em Robert Dupea.
O protagonista de Cada um Vive como Quer ainda podia se debater. Podia fugir. Com David, sentimo-nos “normais” em um meio de anormais, estamos condenados a aceitar um universo feito ao anticlímax, aos impotentes às vezes tragados a uma aventura com a qual não sabem lidar, munidos com armas com as quais pouco ou nada estão habituados.
E talvez seja justamente este o problema de O Dia dos Loucos: queremos alguém como Dupea para um mundo que delimita o espaço dos desajustados. David procura pelo laço que o una ao irmão – mesmo sem assumir claramente. Dupea rompe com todos os laços. Sua família aparentemente normal não o serve. Sua vida de operário tampouco lhe oferece uma verdade que o sacie. Não precisa assistir a uma tragédia para encontrar o caminho de volta.
Uma vez entre pessoas excêntricas, presas às suas regras, David deve aceitá-las ou ir embora. Até certo ponto as aceita. Fica por ali, assiste ao show. Em um deles, a bela Jessica é coroada Miss America para um pavilhão vazio, às palmas de seus três únicos seguidores, no espetáculo para ninguém, com as luzes prestes a serem apagadas.
(The King of Marvin Gardens, Bob Rafelson, 1972)
Nota: ★★★☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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Veja também:
Cada um Vive como Quer, de Bob Rafelson