Nashville, por Wim Wenders

Um filme onde se pode aprender a ouvir e a ver

Sou cineasta. Até há aproximadamente seis anos, escrevia críticas de cinema, mas parei quando eu próprio pude fazer filmes. Fazer as duas coisas parecia-me contraditório. Nesta época, pelo fim dos anos sessenta, o cinema alemão existia ainda menos do que agora. No entanto havia, nos diários e em duas revistas de cinema, uma crítica cinematográfica séria, atenta e, afinal, competente. Se hoje quero saber qualquer coisa sobre um dos novos realizadores americanos importantes, Robert Altman, sou obrigado a informar-me em revistas estrangeiras, por exemplo em uma das cinco revistas de cinema que existem na Inglaterra, se bem que já não se façam praticamente filmes na Inglaterra. Se agora escrevo, se quero escrever, sobre um filme de Robert Altman, a última razão para tal não é a minha cólera perante o estado da crítica cinematográfica na Alemanha Federal, a minha cólera perante o clima no qual se escreve sobre o cinema aqui, a minha cólera perante o respeito de que está rodeado, apesar de tudo, o fato de escrever sobre o cinema.

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Porque, hoje em dia, ao contrário do fim dos anos sessenta, produzem-se na RFA filmes que suscitam o interesse do mundo inteiro. E, longe de constituírem fenómenos isolados, são filmes de uma série de pessoas que produz incessantemente. Mas, por outro lado, já não há uma única revista de cinema para acompanhar com os seus comentários este Neuen Deutschen Film como era o caso dos Cahiers du Cinéma para a nouvelle vague. Zero. Há alguns enclaves de crítica cinematográfica nos cotidianos e hebdomadários nacionais. Há as revistas de programas recentemente aparecidas como Szene, Tip, Blatt, Hobo que têm função de substituto na ausência de verdadeiras revistas de cinema. Mas estas reservas de crítica cinematográfica estão orientadas para as necessidades do dia a dia: fornecem, na maior parte do tempo, critérios de gosto, opiniões sobre filmes. Escreve-se o que os distribuidores poderão citar, mas não se cria uma consciência do cinema como linguagem ou como cultura. Esta forma de crítica exprime-se sobre filmes isolados, mas já não se compara nem com a história do cinema, nem com o estado atual do cinema no mundo, ainda menos com o estado do mundo. Escrevendo só sobre o cinema como alguma coisa que se pode, que se deve ou não ver, ela oculta o sentido do cinema como alguma coisa que está em relação com a vida, que informa sobre o nosso tempo de forma mais exata do que o teatro, a música ou as artes plásticas, que pode prejudicar os homens afastando-os dos seus desejos e medos, ou que pode servir os homens abrindo-lhes a vida e pondo-lhes liberdade à vista, em duas palavras: o fato de que o cinema é mais do que a indústria que produz filmes.

Escrevendo isto, não quero prejudicar as raras pessoas que ainda escrevem sobre cinema neste país. A culpa não é delas se o prestígio do seu trabalho está em relação direta com o prestígio da cultura cinematográfica, e esta foi radicalmente eliminada, durante trinta anos da colônia americana que é a R.F.A. (em matéria de política cinematográfica). O que é tanto mais grave dado que os doze anos precedentes já tinham sido uma razia sem exemplo. Ao mesmo tempo há, muitas vezes, justamente nos jornais regionais, pessoas que têm conhecimentos profundos e um grande amor por cinema, mas nem sequer têm o direito de escrever nas páginas especializadas: estas estão reservadas à cultura. Os críticos de cinema figuram nas notícias locais.

Vi muitas vezes, também, críticas de cinema resumidas, reescritas ou completamente suprimidas pelos demagogos estúpidos, e por isso mais arrogantes, que reinam em muitas redações.

Nos semanários nacionais, sobretudo, e de maneira surpreendente, nestes últimos tempos, no Spiegel, a crítica cinematográfica, o ato de escrever e de refletir sobre os filmes, cedeu o lugar a uma espécie de jornalismo sobre os filmes que acho particularmente estéril. Como se acha mais importante que os seus objetos, já só conhece a demolição ou a euforia, mas ambas de um ponto de vista superior, não a partir dos próprios objetos. Sem caráter, sem posição, e também arbitrário, este jornalismo não desenha nenhum objeto exceto a sua própria imagem. No Spiegel, um tema sobre o jovem cinema, “Meninos-prodígios”, aparece na capa; algumas semanas mais tarde, outro grande artigo aparece, bem diferente: o desmentido grosseiro “Cinema: uma indústria sem futuro”. Como se se elevasse um assunto até às nuvens só para se assegurar do estrondo de um descrédito posterior. Tudo isto não serve o cinema, nem o prestígio do que se escreve sobre o cinema. Não quero dizer com isto que deveria haver mais consenso; pelo contrário, aclamamos talvez demais, nestes últimos anos, os novos filmes alemães – por razões políticas sem dúvida, para não pôr em perigo o que está a aparecer. Uma das consequências é que um filme em cada dois é apresentado pelos distribuidores como “o grande filme alemão internacional”. Atearam-se falsas esperanças, não: atearam-se falsamente as esperanças.

Não haverá filmes alemães capazes de fazerem concorrência às produções internacionais predominantemente americanas. É impensável devido ao estado da produção. Mas, em compensação, poderia haver um cinema alemão específico, quer dizer, que não fosse desbotado e ajustado ao cinema internacional, que pudesse pelo menos ocupar o seu lugar nos cinemas alemães.

Defender uma tal ideia, impor a sua tomada de consciência e voltar a ganhar um público, tal poderia ser a tarefa de uma crítica cinematográfica. Ou de uma revista que não existe.

Acabei de escrever a minha cólera. Se agora escrevo sobre um filme americano não contradigo por isso o que acabo de escrever. Nashville não é um desse filmes-mamutes nos quais os simples orçamentos de publicidade são mais importantes que o budget do Instituto de Apoio ao Cinema. Nashville também não é um desses filmes cabotinos que gabam a América aos quatro cantos do mundo. Nashville é um filme de produção independente, sobre a América, obcecado pela América. Segundo critérios europeus, é um “filme de autor”. Posso escrever sobre Nashville quando não sei se será ainda mostrado em versão original quando passar em mais salas? Nashville é gravado com um sistema sonoro revolucionário, com um aparelho de oito pistas, ou seja, com um máximo de oito microfones, ou que permitiu, na mistura, tornar compreensível até o diálogo em plano recuado e conservar um som original cacofônico, de uma complexidade desconhecida até então. Temos os ouvidos mergulhados em um tumulto que nos envolve. Nashville é também um filme sobre o ruído, sobre este ruído especial da América, feito de música, palavras, trânsito e publicidade na rádio e na televisão. Dobrar este filme equivaleria a apagar-lhe uma metade. O filme é compreensível com legendas, sê-lo-ia mesmo sem elas.

Nashville conta a história de 24 personagens em um espaço de cinco dias. Estes 24 estão, ou ligados uns aos outros, ou sem nenhuma ligação, por vezes os seus caminhos cruzam-se por acaso. Todos têm uma relação com a música. Nashville, Tennessee, onde as suas histórias são contadas, é a capital da indústria americana da country music. É aqui que se encontram todos os grandes estúdios de gravação, as fábricas de discos, os produtores de instrumentos, os agentes; aqui, todos os grandes trusts da música, da rádio e televisão têm as suas sucursais.

É aqui que é produzida esta música à qual não se pode escapar na América, a segunda música popular ao lado do rock. E tudo se mistura. Esta música fala de sentimentos e de desejos, da terra, do pai e da mãe, das “long lonesome roads” e dos “broken hearts”. Uma música por vezes verdadeiramente tocante, mas na maior parte do tempo delicodoce e delambida, que já nem fala de sentimentos, mas de fórmulas comerciais eficazes dos sentimentos. O centro desta capital musical é o Grand Ole Opry, uma sala de concertos de onde vem a mais antiga emissão de rádio dos Estados Unidos, cinco horas diárias de country music.

Altman conta estas 24 histórias em duas horas e quarenta minutos sem voltar atrás, sem relações psicológicas, por vezes completamente encaixadas umas nas outras, mas frequentemente simplesmente sobrepostas, ao correr da história. Durante este filme, habituamo-nos a esta técnica narrativa, porque ela tem cada vez mais a ver com as relações caóticas das pessoas entre elas.

Esta forma de narrativa parece ser também a sua forma de percepção, o modo de estabelecer as suas relações recíprocas. Estranhos tornam-se íntimos de um momento para o outro, no instante seguinte são de novo mais estranhos entre si do que antes. Altman conta todas as histórias de maneira semelhante, imparcial, sem exprimir opiniões. As 24 personagens expõem-se tal como são. Todos os 24 atores têm uma espécie de “normalidade”, justamente não a dos atores escolhidos, um ar normal que só se encontra excepcionalmente no cinema. Não há stars entre eles, muitos são atores com que Altman trabalha há anos, como fazia John Ford. Os atores participaram neste filme de uma forma inabitual nas relações de produção americanas. Eles próprios escreveram e criaram muitos dos diálogos e situações; os que cantam canções escreveram-nas eles próprios. O argumento principal tinha 17 personagens principais. Altman, com os seus atores, elevou este número para 24. Joan Tewkesbury era script-girl em McCabe and Mrs Miller (Quando os Homens são Homens) de Altman. Também escreveu para ele o argumento de Thieves Like Us (Renegados Até a Última Rajada). O próximo filme de Altman, Ragtime*, será realizado segundo um tema original escrito por ela.

Ronee Blakley representa a cantora Barbara Jean, a star no firmamento de Nashville. No princípio da história, ela volta à cidade depois de uma longa hospitalização que se seguiu a um acidente, esperada pela imprensa, pela televisão, uma orquestra de high school e centenas de fãs. Mas, na altura da sua recepção, volta a ter uma recaída. A sua história é a de um perpétuo nervous breakdown e dos esforços para, apesar de tudo, encarar o seu público. É extremamente vulnerável e representa-o com uma tal sensibilidade que temos medo por ela, constantemente. Na altura de um concerto, desorientando-se completamente, perde a cabeça e começa a contar histórias de infância, palrando como uma criança.

Allen Garfield representa o seu marido e manager Barnett, que já não sabe até que ponto deve vender Barbara Jean e até que ponto deve protegê-la. No cúmulo da confusão, só consegue lhe fazer mal quando lhe quer ser útil. Ele gosta dela, vê-se bem, mas o seu amor redu-la ao infantilismo. Barnett é gordo e está sempre a transpirar. De repente, lê-se na sua cara o puro desespero.

Karen Black representa a cantora Connie White, a suplente no programa depois de Barbara Jean. Substitui-a quando Barbara Jean desiste. Nunca estão as duas ao mesmo tempo em cena. Neste sistema só lhes resta odiar-se. Já tinha admirado Karen Black em Five Easy Pieces (Cada um Vive como Quer) de Bob Rafelson, onde ela se atrevia a representar uma mulher que não se podia achar simpática por causa da ordinarice, dos modos ingênuos, infantis-maternais-devoradores que emanavam dela; pormenores chocantes, nunca vistos no cinema mas tão frequentes na América. No papel de Connie White também, ela faz-nos entender uma mulher, mostra alguma coisa de essencial de uma mulher, de uma mulher americana.

Henry Gibson representa o cantor Haven Hamilton, a eminência parda de Nashville, um homem que se conduz como se reinasse sobre toda a cidade, um presidente da câmara-relações públicas, de certo modo. Veste-se com fatos brancos suntuosamente bordados, com fatos de cowboy de cerimónia e usa uma absurda peruca de duas cores. É muito pequenino, mas todo cheio de si próprio. É com Haven que começa o filme: está gravando no estúdio o seu disco do bicentenário, com o refrão: “We must be doing something good / To last two hundred years”.

Faz despedir um músico do estúdio chamado Frog, porque os seus cabelos compridos lhe desagradam. Frog é Richard Baskin, o diretor musical do filme. Aparece em todas as ocasiões possíveis como músico, mas não faz parte das 24 personagens principais. Haven tem um filho de trinta anos, Bud (Dave Peel), que mantém em sua completa dependência. Bud segue o seu pai como uma sombra. E Haven mostra o seu filho a todos como uma mãe-galinha mostra o seu filho exemplar. Fá-lo subir em cena durante um concerto. “Isn’t he wonderful?”. O público aplaude. Nashville fala de muitas das coisas de que a América é feita. Uma delas é a ausência de identidade dos homens e das mulheres enquanto homens ou mulheres. Haven parece-se mais com uma das ricas ladies de Miami Beach, e Bud é mais a sua filha do que seu filho.

A mulher que acompanha Haven por toda parte, levando-o pela trela, é a patroa de night-club, Lady Pearl (Barbara Baxley). Vemos ela discutir com Hagen para saber se o refrão de uma canção é “Wonder, wonder” ou, como ela afirma, “Wanda, Wanda”, e o canta como o imagina. Tem a voz de Daisy Duck. Perfeitamente assexuada.

Sueleen Gay é criada em uma coffee shop, e sonha tornar-se cantora country. Servem-se do seu sonho com maldade: com uma vaga promessa de fazê-la se apresentar no Opry ao mesmo tempo que Barbara Jean, um político local leva-a a fazer um strip-tease perante uma assembleia de homens sós. Sueleen forra o soutien com lenços de papel. Gwen Welles levou muito tempo para se preparar para o seu papel e trabalhou como criada no café do aeroporto de Nashville. Tem uma maneira completamente surpreendente de ser parva e cantou desafinada.

Mais outra jovem quer se tornar cantora. Albuquerque (Barbara Harris) vem de caminhão das montanhas para Nashville, acompanhada pelo marido, mais velho, Star (Bert Remsen). Star não quer que ela cante, e então ela foge. Enquanto Star a procura por todo o lado, Albuquerque procura encontrar uma oportunidade por toda a parte. Entra claramente em decadência, dorme nos carros mas, no fim, consegue, apesar de tudo, cantar em frente a uma grande audiência. E então canta tão bem que ficamos de respiração cortada. O cantor Tom (Keith Carradine) tem ligações com muitas mulheres, ou seja, não tem uma relação com as mulheres. Apaixonado por si próprio, só gosta de ouvir a sua própria música, que toca permanentemente num gravador do seu quarto de hotel. Keith Carradine também escreveu ele próprio as suas canções. O amor que Tom canta contrasta violentamente com a sua incapacidade para reconhecer seja o que for, para além dele próprio. A música rock fala frequentemente deste narcisismo.

Shelley Duvall representa Martha, que veio de Los Angeles para Nashville. Martha faz-se chamar L.A. Joan. Tem uma tal vontade de conhecer pessoas que não conhece ninguém, e que ninguém a chega a conhecer. Martha muda constantemente. Acontece-lhe ir à casa de banho e, quando sai, o tipo que conversava com ela há um instante não a reconhece porque ela mudou de penteado. Aliás, Martha interessa-se imediatamente por outra pessoa.

Um jovem com óculos cromados chega a Nashville com um violino debaixo do braço. Não se sabe grande coisa sobre Kenny Fraiser (David Hayward). Passeia e observa tudo. Vemos ele telefonar à mãe. Desliga antes de dizer: “I love you too, Mama, I really do”.

Paralela à indústria da música, acompanhamos ao longo do filme a história de uma campanha eleitoral para o candidato às presidenciais de um terceiro partido batizado “Replacement Party”, com o slogan “New Roots for the Nation”. O candidato chama-se Hal Phillip Walker, e um dos seus chefes de relações públicas, John Triplette (Michael Murphy), é encarregado de preparar a sua intervenção em Nashville. Triplette tenta obter, para a sua campanha, o apoio dos grandes barões locais, Haven Hamilton e Barbara Jean. Acena a Haven com o posto de governador do Tennessee. Nas costas das pessoas a quem faz a corte, troça delas. Hal Phillip Walker nunca aparece, só se ouve a sua voz, difundida permanentemente pelo alto-falante de uma caminhonete publicitária que evolui em um plano recuado ao longo de todo o filme. Esta voz está permanentemente presente, e fala a linguagem da política onde verdadeiramente tudo é intermutável. O escritor Thomas Hal Phillips escreveu para Altman esta campanha presidencial e as suas personagens que não faziam parte do argumento inicial.

A língua da política e a do show-business falam sem interrupção de “valores”, em Nashville; pretendem acreditar em valores mas, ao mesmo tempo, desprezam profundamente estes valores e são a sua negação mais vulgar.

Um advogado de Nashville, Delbert Reese (Ned Beatty), é o parceiro de Triplette nestes trabalhos de aproximação. Conhece bem a cidade e deve estabelecer “contatos” para Triplette. Delbert é um homem que ataca tudo direta e eficazmente, mas de vez em quando está completamente desamparado. Ned Beatty representa-o então com ar cômico, espantosamente simples e humano.

A sua mulher Linnea (Lily Tomlin) canta em um coro gospel totalmente negro, exceto ela própria. Os Reese têm dois filhos de onze e doze anos, surdo-mudos de nascença. Lily Tomlin é conhecida nos Estados Unidos como cômica em uma série de televisão. É o seu primeiro papel sério no cinema. A sua bela cara inteligente, a sua maneira de falar com as crianças ou mesmo, uma vez, de cantar servindo-se da linguagem por gestos, a emoção que lhe vemos exprimir em um episódio com Keith Carradine, que a seduziu, todos estes momentos, na visão deste filme, têm uma importância profunda, porque são os únicos onde alguém para, escapa ao frenesi geral e parece compreender a si próprio e entender o que o rodeia.

Nashville é também um filme sobre a língua e a sua degradação até se tornar um simples ruído: noise. Ninguém ouve as palavras de ordem de Walker. E quando, excepcionalmente, se levanta uma orelha só se ouvem tautologias, repetições absurdas. Por ocasião de uma stock car race, Albuquerque canta em um estrado improvisado, acompanhada por Frog, uma música que se ouve em todas as manifestações de Nashville, mas não se consegue ouvir nada do que ela canta, se bem que a sua voz passe pelos amplificadores. O ruído dos carros modificados impede o som de passar. Só se veem as suas contorções.

Haven diz ao público do Opry, quando quer explicar que Barbara Jean não pode se apresentar por causa de uma nova depressão: “She really cried real tears” (Ela chorou lágrimas de verdade).

O que se opõe a isto em Nashville são Linnea e os seus dois filhos, que falam, mas com grande dificuldade e com erros, porque não ouvem a si próprios. Acompanham também as palavras por sinais, Linnea escuta-os e olha-os, e quando ela responde, as crianças olham-na. Há uma emoção profunda nestas cenas. Vê-se aí claramente a única coisa que permite à língua funcionar: um dom. Escutar, aqui, é também olhar. De repente torna-se evidente que o cinema também é uma linguagem. Na linguagem por gestos de Linnea e dos seus filhos não há mentira; o que torna tanto mais visíveis as grandes mentiras que os rodeiam.

Há ainda o motorista Norman (David Arkin), o homem do triciclo (Jeff Goldblum), o soldado Glenn Kelly (Scott Glenn), o velho Mr. Green (Keenan Wynn), o cantor negro Tom Brown (Timothy Brown), um bêbado, Wade (Robert Doqui), e o trio Tom, Bill e Mary (Keith Carradine, Allan Nicholls e Cristina Raines). Deixo para o fim a jornalista da BBC, Opal (Geraldine Chaplin), porque não gosto dela. Opal vaga por todas as histórias. Faz uma reportagem sobre Nashville. Na concepção de Altman, Opal é sem dúvida uma espécie de fio condutor, e isso é fatal para o seu papel: é a única a não ser uma pessoa viva, mas uma invenção totalmente artificial. Os seus comentários excitados sobre tudo o que vê enervam; a intenção de fazer disto “o ponto de vista europeu sobre a América” é demasiado evidente. Altman quer denunciar aqui uma atitude que procura interpretar tudo e todos, que tem uma opinião e não pode deixar nada em paz, mas que deve sempre, imediatamente, forçar à interpretação; mas isto não teria sido preciso: o seu próprio filme é uma tomada de posição convincente contra tal atitude. O pior momento de Opal: na altura de um choque em cadeia na auto-estrada, onde muita chapa foi destruída, mas mais nada, ela quase desmaia e grita ao microfone: “I saw legs sticking out. This is America!”. A seguir, quando Linnea lhe diz que os seus filhos são surdo-mudos, Opal desliga imediatamente o gravador e não para de repetir: “How awful!”. Mas é justamente com a sua “piedade” que ela produz algo de horrível – ou seja, uma falta de gosto sem par. É difícil fazer entender com esta enumeração, e mesmo de entender por si próprio, a performance de Altman contando todas estas histórias simultaneamente sem que elas se matem ou contrariem umas às outras. Pelo contrário: na sua junção, adicionam-se para dar uma forma de história particular, totalmente nova. E esta forma de contar uma história liberta as 24 personagens das limitações que normalmente a story impõe aos atores, tendo as personagens o dever de se orientarem mais em função da dramaturgia do que da sua capacidade para libertarem a sua própria personalidade, da sua capacidade para “representarem” a sua presença sem intermediários. Em Nashville, 24 atores podem fazer isso: libertos de uma dramaturgia da story e, por isso, livres para a história, podem exercer as suas faculdades de estar “vivos”, ainda que, naturalmente, “representem”. Vê-se como se ocupam a viver.

Altman diz em uma entrevista: “We are not telling a story. We are showing”. O que dá também aos espectadores novas possibilidades de descobrir, de ver e de ouvir qualquer coisa, e não só por causa da quantidade de histórias. Nashville é um filme enciclopédico sobre a América.

Robert Altman teve, para com este filme e as suas personagens, uma atitude que o distingue nitidamente do cinema americano: o que contava para ele não era explorar estas personagens, mas compreendê-las. Assim, Altman, no momento do strip-tease forçado de Sueleen, não a expõe ao riso, protege-a dele ao mesmo tempo, mostrando como este riso funciona no grupo de homens que rodeiam o pequeno palco e “encorajam” a jovem. Não se associa a estes risos obscenos, mas, pelo contrário, respeita a nudez de Sueleen no fim, distanciando o olhar sobre ela e recuando até um plano geral. Vi justamente, há alguns dias, um exemplo completamente diferente em Der Starke Ferdinand, de Alexander Kluge, onde se vê também, em um plano, uma mulher posta nua, e também contra vontade, porque Ferdinand lhe arranca a coberta. Vê-se bem que ela não gosta de se mostrar nua, que se sente exibida, mas Kluge ainda por cima faz um zoom sobre o seu grande peito. Aí está outra atitude. Podia incluir-se Nashville no gênero de filme-catástrofe: com a pequena diferença de que fala de sentimentos em ruínas e de relações desastrosas entre as pessoas. Mas Nashville não chegou ainda a interiorizar estas ruínas até ao ponto de se divertir com elas, como, por exemplo, em O Inferno na Torre ou Terremoto em face do medo das suas personagens totalmente fictícias. Pelo contrário, Altman mostra, na própria descrição da vulgaridade, da decadência emocional e da histeria, que poderia aí estar outra coisa: ou seja, o dom, a atenção e a emoção.

O cinema americano tem aí, como dizia, outra tradição, que se mostra sobretudo em um grande sucesso comercial dos últimos tempos, Um Estranho no Ninho, no fim do qual um índio bate a asa e se liberta, não: imitando o clichê da libertação, bate a asa. O seu realizador, Milos Forman, também se pira, de resto não tinha outra intenção do que a de fazer umas brincadeiras no “asilo de loucos”.

Altman, em Nashville, não fez brincadeiras, ainda que o filme seja frequentemente cômico. Não vira as costas às suas personagens; deixa isso para Walker, o candidato à presidência, o qual, pouco antes do início da sua intervenção no Parthénon (Nashville é a Atenas do Sul), foge espavorido sem que o tenhamos nunca visto cara a cara.

Que se passou? As 24 personagens tinham-se encontrado todas aqui, música, política e show-business eram uma coisa só, uma multidão importante espera o candidato, quando rebentam disparos de arma de fogo. Kenny, de óculos de armação metálica, que até ali se limitava a vagar, silencioso, tirou um revólver do seu estojo de violino e atirou em Barbara Jean. Há uma desordem pavorosa em cena. Haven Hamilton grita: “This ain’t Dallas. This is Nashville. O.K, everybody, sing! Come on, sing!”. E Albuquerque avança, apanha o microfone do chão e começa a cantar uma canção que já apareceu em plano recuado durante todo o filme, no gravador de Tom. A voz de Albuquerque torna-se cada vez mais forte e segura de si, as pessoas repetem o refrão, cada vez mais numerosas, na cena o coro gospel, a multidão em frente ao Parthénon. Altman está no meio deles. “You may say that I ain’t free / But it don’t worry me / It don’t worry me / It don’t worry me/ They tell us we ain’t free / But it don’t worry me”.

A câmera faz uma panorâmica para o céu. Sobreimpressão a negro. Genérico. A música continua. Como sempre e por toda a parte, corre a cortina, se bem que o genérico continue a passar. Já aqui fora, lembro-me destes estados de euforia, outrora, na saída de um filme de Godard. Hoje também, este filme abriu-me os olhos e deu-me prazer a cada vez que apareceu de novo.

Nashville”, maio 1976, em Emotion Pictures (Edições 70; pgs. 125-137)

*Ragtime foi realizado por Milos Forman e lançado em 1981; no Brasil tem o título Na Época do Ragtime.

Este site fez algumas pequenas alterações no texto devido ao português de Portugal da tradução contida na fonte, sem alteração no conteúdo.

Veja também:
Rashomon, segundo Robert Altman

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