Mickey One, por Antonio Moniz Vianna

No cinema há oito anos, Arthur Penn ainda estava no terceiro filme em 1965: este Mickey One, ensaio estranho, incompreensível até nas influências confessadas e que variam de Kafka a Fellini. Ou Penn é muito exigente ou, como há indícios, um homem muito difícil. O insucesso da estreia, The Left Handed Gun (Um de Nós Morrerá) – aliás normal, se o filme arranhava um mito, sugerindo impulsos homossexuais de Billy the Kid – explicaria a inatividade de Penn até 1962. O reaparecimento: The Miracle Worker (O Milagre de Anne Sullivan), e o êxito, reconhecido até pela Academia de Hollywood. A inatividade de Penn teve outros motivos, talvez injustos, como na versão sobre a sua substituição por John Frankenheimer na direção de The Train. No outro período, o diretor que viera da tv para o cinema, foi para o teatro, onde encenou, além de The Miracle Worker, outra peça de William Gibson, muito inferior, Two on a Seesaw (Dois na Gangorra), filmada por Robert Wise na mesma frequência.

Mickey One é produto de uma revolta – ou é apenas uma provocação? No sentido social, nem uma nem outra coisa, pois obras socialmente agudas na crítica e na denúncia são comuns no cinema americano – muito mais aberto à crítica do que qualquer outro cinema. Arthur Penn não alveja o Pentágono, o big business, o Congresso ou a Casa Branca. Na história, há uma extensa, toda-poderosa, portanto invencível racket, cujo chefe talvez seja o homem invisível atrás do refletor – pois não é possível garantir se a voz que ordena é a voz do dono.

Essa racket talvez não seja como as que existiram sob a forma de gangs e continua existindo, hoje mais do que nunca, nos chamados grupos de pressão. O protagonista, também, talvez não seja um entertainer, talvez sua dívida de jogo não seja tão insuperavelmente grande – e jamais a câmara o surpreende jogando. Em Mickey One, o real e abstrato estão associados, continuamente interpenetrando-se; e o plano da realidade talvez esteja ocupado pelo sonho – ou um pesadelo que Penn desejou fosse ultrafelliniano. O que a câmera está sempre mostrando, nunca acidentalmente: um cemitério de automóveis (e o guindaste, numa enquadração, parece perseguir o herói, como o braço de um monstro de science-fiction), imagens de carros em decomposição antes de serem prensados em cubos iguais de sucata, às vezes focalizando também casas no mesmo estado, por isso atacadas por uma equipe de demolição. A decomposição geral é a constante de Mickey One; física e moral, senão físico-moral, como a dos quatro assaltantes que despem e saqueiam um velho gordo (infarto ou embriagues). Um dos assaltantes é um preto com as mãos deformadas – talvez leproso; outro, louro, é um pederasta débil mental, como sugere a cena em que reaparece, num dos carros velhos, o repugnante quarteto. Um dos empregos de Mickey One (Warren Beatty) é o de lixeiro de restaurante; o agente que lhe arranja uma chance no palco (uma espelunca) é um rufião, pronto a encaminhar rapazes de boa aparência ao Xanadu, nightclub dirigido por um homossexual (Hurd Hatfield) na tradição wildeana. Homens vestidos à moda George Washington, para algum show histórico, têm um rádio transistor colado no ouvido. Cicatrizes e manchas estão distribuídas pela maioria dos rostos. As vitrinas são ridículas ou sinistras ou ameaçadoras. Alexandra Stewart é a beleza que ilude, o amor que atraiçoa. E o japonês?

Tudo isso em Chicago. E onde a influência de Fellini? Mais admissível a de Jacopetti: na superfície, Chicago cane, como nos observava uma jovem atriz, tão bonita quanto inteligente. E a influência de Kafka? Os epígonos de O Processo, felizmente, são poucos. Penn exige ser tomado como um deles – e assim define Mickey One: “a história de um comediante que pensa ter uma dívida, mas não sabe a quem deve pagá-la; nisto reside talvez um problema especificamente americano: o da vida vivida com precaução”.

A dívida é um símbolo, como tudo mais em Mickey One: a racket (a sociedade?), o racketeer invisível (o Estado?), o night-club (a compulsoriedade de emprego?), os assaltos, a doença, as cicatrizes e manchas (a moral do homem civilizado?) – assim por diante. Símbolo após símbolo, no fundo aquela velha história de uma perseguição – mas o simbolismo é mera camuflagem. E a camuflagem não oculta o caos, se não é o que produz toda essa confusão.

Correio da Manhã (27 de maio de 1966)

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