O produtor Jack Warner, um dos fundadores da Warner Bros, recebeu um título honorário do governo americano após realizar, durante a Segunda Guerra Mundial, filmes antinazistas. Era republicano assumido e representava bem – sendo um entre outros exemplos, como o ator John Wayne – o alinhamento da indústria do cinema a uma certa ideologia.
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O que ficaria conhecido como “soft power” – termo popularizado mais tarde para se referir ao poder de influenciar comportamentos e interesses – já estava em marcha nos tempos de Warner e Wayne, e não apenas nos Estados Unidos. A indústria cultural soube bem como utilizar esse “poder brando” a seu favor. Os americanos sempre foram craques em vender (e exportar) a própria bandeira – sem que ela precisasse aparecer o tempo todo – em heróis destemidos, tecnologia de ponta, na defesa do militarismo e no discurso de liberdade.
Poucos filmes recentes cumprem tão bem essa ideia de nação quanto Top Gun: Maverick, de Joseph Kosinski, estrelado por Tom Cruise. Em um tempo no qual o presidente democrata amarga alta taxa de reprovação e o mundo parece ter vencido o pior momento de uma pandemia, em que a Rússia abre uma guerra em pleno solo europeu, nada pode funcionar melhor ao americano médio – e aos povos que tem os americanos como modelo – do que Top Gun. É feito para elevar a moral, para reencontrar heróis nas forças militares, restaurar a honra e o orgulho. É propaganda.
Cruise é o capitão Pete “Maverick” Mitchell. O garotão dos anos 1980 – no filme que o transformou em astro – dá lugar a um homem maduro e consciente, ainda assim insubordinado quando necessário, quando sabe – e quase sempre sabe, sob a falsa aparência de risco – que precisa tomar o caminho certo para dobrar os superiores. Precisa fazer jus ao codinome Maverick – aquele que aceita desafios, que se aventura.
A fama de problemático garantiu a não elevação de patente. No fundo nem a desejava. Maverick não nasceu para ser burocrata ou milico de escritório, no máximo o professor de um grupo de jovens pilotos a quem é dada uma missão importante: destruir uma base com urânio em um país não nomeado, possivelmente o Irã. É Tom Cruise, a quem o envelhecimento é rejeitado. Logo ele, homem de negócios antes do astro, do showman, da propaganda ambulante de alguém que faz tudo e dispensa dublês.

A propaganda do heroísmo americano vem acompanhada de nostalgia. Maverick ainda guarda um antigo avião em seu hangar, os óculos escuros de sempre, a jaqueta cheia de detalhes bordados, as fotos dos amigos de antes, a moto potente e, no retorno à velha base, velhos amores e dilemas: a bela moça que ele teria iludido no passado (Jennifer Connelly, outra imagem de sonho) e o filho do amigo que morreu em seus braços.
Maverick assiste à juventude sem abrir mão de sua posição: ele não está ali apenas para treinar os jovens pilotos para a difícil missão; ele precisa estar entre eles, ser o melhor, o único que pode cumprir os malabarismos que o ataque exige. Quer dizer, o filme apenas finge que há uma passagem de bastão, do mestre para o pupilo, na figura de Miles Teller.
O filme é feliz enquanto finge que o velho renova-se sem deixar de lado o que o passado tem de bom. Tenta ser cool e até adolescente nas relações de Maverick com Penny (Connelly). Na verdade, é o exato oposto: Cruise é uma reprodução acabada do herói clássico ao qual o cinema americano plano nunca deixou de recorrer, o homem belo sem conflitos profundos e contradições, alguém que recusa ser apenas uma sombra do que foi.
O mundo de Maverick continua à sua espera, sob os tons madeira da fotografia de Claudio Miranda, com diversas cenas realizadas ao pôr-do-sol. Outra vez, segue-se a falsa ideia de crepúsculo, de passagem, o invólucro perfeito para a nostalgia diluída nos dramas que Cruise fracassa ao tentar construir. Com o filme que lhe serve, pouco deixa aos demais: para Connelly, a bela dona de um bar, uma imagem vazia da beldade que, por motivos que fogem à nossa compreensão, continua disponível; ao filho do amigo morto em seus braços, a aparência do rapaz imaturo, com pouco a fazer senão ser peça do drama raso.
Ao lado do herói há uma espécie de espírito, alguém a pedir que ele siga em frente, a honestidade em pessoa, o velho oficial negro de cabelos brancos vivido por Charles Parnell. Sua função na narrativa é ser o atestado final – outra falsidade a favor da ficção – de que o universo de retidão da Marinha aceita – ou, mais ainda, precisa – aquele que se arrisca. Todo filme que lança mão desse tipo de herói tenta nos dizer a mesma coisa: ele é o escolhido.
Como a construção de personagens e situações (dos menores aos maiores), a nostalgia está a serviço da propaganda. Em seu teor político, Top Gun parece nos dizer o tempo todo que algumas tradições seguem intactas, das bebedeiras e cantarolas entre camaradas aos rituais que sucedem a morte de um amigo, com salva de tiros e aviões soltando fumaça.
E, como no cinema americano dos anos 1980, traumatizado pelo Vietnã, o melhor da aventura segue sendo o “nós contra eles” – sem se importar com o que podemos compreender por “eles”. Os vilões são figuras distantes, não têm vida; são homens de capacetes pretos em aviões pretos em algum país de montanhas geladas com mísseis em suas copas.
A propaganda em Top Gun tem sucesso justamente porque prefere colocar os supostos conflitos nos domínios de Maverick e sua turma e não eleger um vilão com rosto e intenções definidas. Se a ausência do vilão em alguma medida poderia diminuir o maniqueísmo, no filme de Kosinski dá-se o oposto: sua ausência só ajuda a maquiar e robustecer o lado que realmente interessa. O que ajuda e muito a explicar a ausência de qualquer contradição e, por isso mesmo, a aparência constante de se estar vendo uma propaganda de homens – e uma única mulher, a personagem de Monica Barbaro – tentando domar máquinas.
Enquanto o filme corria, pensei, em vários momentos, em um faroeste. O aventureiro solitário, com status de lenda, é chamado para uma missão. Ele precisa comandar um grupo e, no único saloon de uma cidade empoeirada, uma bela mulher guarda o balcão e o aguarda. Ela tem uma filha e tenta esconder o óbvio: sempre foi apaixonada por ele.
Em Top Gun, a ação por trás da propaganda americana de heroísmo é tão eficiente que até críticos sérios têm elogiado o filme. Em Cannes, estenderam-lhe um tapete vermelho e deram uma Palma para Cruise. O filme ficou engavetado por um bom tempo devido à pandemia. Não poderia haver melhor momento para sua estreia, com seu herói perfeito para tempos de incerteza envolvendo questões políticas, bélicas e sanitárias.
(Top Gun: Maverick, Joseph Kosinski, 2022)
Nota: ★★☆☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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Bela reflexão. Valeu!
Obrigado pelo comentário!
Melhor texto que li quanto ao filme.
Valeu! Abraço!