No início, eu imaginava que as luzes da sala de cinema se apagavam para melhor enxergarmos as imagens na tela. Então observei com atenção os espectadores sentados confortavelmente em seus lugares e constatei que havia uma razão mais importante: essa obscuridade permitia a cada espectador isolar-se dos outros e estar só, estar ao mesmo tempo entre os outros e deles separados.

Cada indivíduo, assistindo ao filme, cria seu próprio mundo. A partir de cada detalhe – de uma cidade ou uma pradaria, de uma personagem ou um assunto – que aparece na tela, o espectador se informa para criar um universo. O cinema não nos informa de um único mundo, mas de vários. Ele não nos fala só de uma realidade, mas de uma infinidade de realidades.
Para um cineasta, como para um espectador, a verdade não se encontra fora das convenções cinematográficas, as quais, por sua vez, não são necessariamente estáveis. O universo de cada obra, de cada filme, nos fala de uma nova verdade. No escuro da sala, damos a cada um a possibilidade de sonhar e de exprimir livremente seus sonhos. Se a arte consegue modificar as coisas e propor novas ideias, ela só o faz graças à livre criatividade daquele a quem se dirige: o espectador. Entre o mundo ideal e fabricado do artista e aquele de seu interlocutor, há um vínculo sólido e permanente. A arte permite ao indivíduo criar sua verdade segundo seus desejos e seus critérios. Ela também permite não aceitar outras verdades impostas. A arte dá a cada artista e a seu espectador a possibilidade de perceber melhor a verdade dissimulada por trás da dor e da paixão que os seres ordinários experimentam cotidianamente. O engajamento de um cineasta em querer mudar a vida cotidiana só é possível pela cumplicidade com o espectador. Este só é ativo se o filme cria um universo repleto de contradições e de conflitos, pois ele (espectador) lhe é sensível. Cito aqui, com prazer, uma frase de Jean-Luc Godard: “A realidade é um filme mal realizado”. E uma de Shakespeare: “Nós somos a matéria dos nossos sonhos”, ou “nos parecemos mais com nossos sonhos do que com a vida que nos rodeia”.
A poltrona do cinema frequentemente ajuda muito mais do que o divã do psicanalista. O espectador completa seu filme a partir de nosso “semifilme”. Uma centena de espectadores fabrica seu próprio filme ao mesmo tempo; ele lhes pertence e corresponde ao universo de cada um deles. Cito novamente Godard: “O filme que vemos na tela não está vivo, é o que se passa entre o espectador e a tela que está…”. Godard quis dizer, creio, que cineasta e espectador se equivalem. Se o cineasta encanta, e o espectador é encantado, não estamos em uma relação de igualdade. O espectador é criativo e espera que o cineasta também seja. Acontece às vezes de o espectador imaginar o filme muito melhor do que o criador.
Creio num cinema que dá mais possibilidades e mais tempo a seu espectador. Um cinema semifabricado, um cinema inacabado que se completa pelo espírito criativo do público; e, então, teremos uma centena de filmes. É verdade que um filme sem história não faz muito sucesso junto ao espectador, mas também é preciso saber que uma história deve ter buracos, espaços vazios – como nas palavras cruzadas -, e que é o espectador quem deve completá-los. Ou então, como um detetive particular numa intriga policial, deve descobri-los.
Enquanto cineasta, eu conto com essa intervenção criativa, caso contrário, filme e espectador desaparecerão juntos. As histórias sem falha, que funcionam perfeitamente demais, têm um grande defeito: impedem o espectador de intervir.
No próximo século de cinema, o respeito ao espectador enquanto elemento inteligente e construtivo é inevitável. Para alcançá-lo, é preciso talvez se distanciar da ideia segundo a qual o cineasta é o mestre absoluto. É preciso que o cineasta também seja espectador de seu filme.
Texto apresentado em 20 de março de 1995, em Paris, no colóquio “O cinema rumo a seu segundo século”, publicado por Le Monde Éditions, 1995, sob organização de Jean-Michel Frodon, Marc Nicolas e Serge Toubiana. Publicado originalmente com o título “Un film, cent rêves”, em Laurent Roth (org.), Abbas Kiarostami: textes, entretiens, filmographie complète. Paris: Cahiers du Cinéma, 1997. (Collection Petite Bibliothèque). Tradução do francês por Maria Chiaretti para o catálogo da mostra Abbas Kiarostami – Um Filme, Cem Histórias.
Imagem do cabeçalho: Juliette Binoche em Shirin, de Abbas Kiarostami.
ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook e Telegram

Veja também:
Recordações de Gosto de Cereja, por Abbas Kiarostami