Lamb, de Valdimar Jóhannsson

Na série Cinco Inspirações, do Mubi, o diretor Valdimar Jóhannsson cita algumas das obras que serviram de inspiração para Lamb. Uma delas, a primeira, chama a atenção e nos ajuda a compreender o filme: é a pintura Anguish, de August Friedrich Albrecht Schenck, na qual uma ovelha coloca-se sobre seu filhote morto, na neve, rodeada por diversos corvos.

A mãe protetora tenta evitar que a natureza cumpra seu próprio ciclo: uma vez morto, o filhote servirá de alimento aos corvos que o rodeiam. Lamb também aborda a tentativa de quebrar um ciclo, à medida que o instinto materno sobrepõe-se à natureza e a forma do filho – meio homem, meio animal – fica entre universos aparentemente inconciliáveis.

Na Islândia, entre montanhas e neve, Maria (Noomi Rapace) e o marido Ingvar (Hilmir Snær Guðnason) criam ovelhas no estábulo de sua propriedade. Certo dia, o cotidiano de ambos é transformado quando uma dessas ovelhas dá à luz uma filhote que reúne formas humanas e animais. O casal fica com a bebê, dá-lhe o nome de Ada.

Mais tarde, quando Maria visita um cemitério, descobrimos que o mesmo casal perdeu uma filha e que ela chamava-se Ada. O aparecimento da criança-animal é uma forma de as personagens preencherem o vazio passado, aplacarem a perda. Um casal que com frequência prefere o silêncio e o trabalho duro na propriedade em que vive isolado.

O filme de Jóhannsson utiliza recursos que nos remetem ao terror, ainda que, no fundo, seja quase sempre uma exploração do desconforto, um choque com formas com as quais não estamos acostumados: a natureza do cordeiro é ao mesmo tempo próxima, ao mesmo tempo estranha quando dividida com formas humanas, em um mesmo corpo.

A criança que nos encara, sempre com a face de aparente inocência, é a do animal que não se encontra no mundo de homens, de adultos, de pessoas que precisam de sua presença, mas também a figura que pede por cuidados, a quem uma nova mãe – disposta inclusive a abater a ovelha que lhe trouxe à vida – volta seu instinto de proteção.

Enquanto parece separar homem e natureza, o filme une-os o tempo todo. O que me faz retornar à pintura de Schenck e à “angústia” ali retratada: não seriam os corvos uma representação dos seres humanos, prontos para usurpar o corpo do filhote? Não seria a forma de Schenck uma aproximação à Pietà de Michelangelo? Como na representação religiosa, a personagem central de Lamb, a mãe protetora, chama-se Maria.

A certa altura surge o irmão de Ingvar, Pétur (Björn Hlynur Haraldsson). É o homem da cidade, corrompido, deixado por seus pares à beira da estrada, no frio, para voltar à antiga propriedade isolada. Se o casal não vê qualquer problema em criar uma criança-animal como parte da família, com lugar à mesa, o visitante jogará em cena a ideia de que aquela conjugação é impossível: até certo ponto, ele só enxerga o animal.

Seria óbvio demais se essa personagem fosse a fonte de todos os problemas. O irmão recém-chegado é um recurso narrativo importante para compreendermos o nosso próprio olhar em relação ao todo, a nossa dificuldade de aceitar a natureza tal como ela é e, sobretudo, a impossibilidade de aceitar o diferente como semelhante.

Lamb não esconde seu lado fantástico, e sequer precisa explicá-lo. Um filme a ser encarado como um retrato fiel do que somos, ou do que nos tornamos – pais, mães, visitantes desregrados e sem lugar no mundo, conquistadores do espaço – nessa sanha de domesticar a natureza ao redor e ocupar o ponto mais alto da cadeia alimentar (com armas e máquinas).

A criatura que retorna para resgatar a criança – sua filha – anda sobre duas pernas, carrega uma arma. A natureza igualmente toma algo dos humanos. A ovelha que sofre com a morte do filhote na pintura de Schenck sabe que os corvos estão prontos para dilacerá-lo. O filme de Jóhannsson imagina sua vingança, não sem apresentar o que temos de pior.

(Idem, Valdimar Jóhannsson, 2021)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Veja também:
Além das Palavras, de Terence Davies

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