Às vezes invejo o teatro e particularmente o momento em que, mal acaba o espetáculo – o espectador ainda está imerso na ficção -, abrem-se as cortinas e o ator, que morrera instantes antes, levanta-se e vai agradecer. Isto, no cinema, não é possível.
Estava já tudo pronto para rodar Os Sonhos de Tahereh, ou seja, a mesma história de Através das Oliveiras, porém do ponto de vista da moça. No último momento, a poucos dias de iniciar as filmagens, perdi a vontade de fazê-lo. Havia trabalhado no projeto durante um ano e meio em regime integral e conhecia-o em todos os detalhes, todas as premissas e conclusões. Estava convencido de que o momento das filmagens não me traria nada de novo. Pessoalmente, é como se já o tivesse realizado.

Nesse período estava impressionado com uma frase do filósofo Cioran, que afirmava: “Se não houvesse a possibilidade de suicídio, eu já teria me matado há muito tempo”. Redescobrira também os versos de Omar Khayyam [C. 1048 – C. 1123], um dos grandes poetas persas. A simplicidade, a inteligência e a sensualidade de seus poemas, escritos de modo tão preciso e conciso. Seus versos lembram continuamente a presença da morte e a necessidade de conviver melhor com essa ideia; porém, não para nos tornarmos pessimistas, mas para tomarmos consciência da natureza do homem e para melhor rendermos graças à vida. Comecei a procurar informações sobre os suicidas e o número era impressionante: 70% das pessoas já pensaram seriamente, ao longo da vida, em suicídio. É preciso considerar o suicídio uma questão universal, uma hipótese a avaliar na vida. Além disso, outros dados me deram uma segunda perspectiva sobre o assunto: diz-se que, no mundo, a cada dia, de 13 mil pessoas que tentam o suicídio, só mil conseguem concretizar a ação. Isso significa que as outras 12 mil fizeram meia tentativa, sem um verdadeiro motivo, sem uma motivação séria. Portanto, não se mataram, mas mataram, antes, os outros. É uma espécie de vingança contra aqueles que os circundam e pelos quais se sentem abandonados.

Gosto de Cereja (Tam’-e ghilas, 1997) começou a tomar forma a partir de uma poesia iraniana que fala de uma borboleta curiosa. A borboleta esvoaça ao redor de uma vela e, pouco a pouco, se aproxima da chama para vê-la melhor, até que, inevitavelmente, se incendeia. Também o protagonista do filme gira e volta a girar com seu automóvel, até cair no buraco que ele próprio cavara. Esse girar transmite também uma ideia de entusiasmo e de fogo interior que encontramos em muitos poemas persas. Pensei logo que o filme, que fala da morte, tinha de ter mais movimento que meus outros trabalhos, porque o tema exigia mais ação, precisamente para contrariar a morte. Quando está para se apagar, a chama da vela aumenta de intensidade. Da mesma maneira, o doente prestes a morrer fica ótimo de repente, porque concentra todas as suas energias para resistir ao fim.
A encenação “circular” fazia parte da estrutura simbólica. Girar significa literalmente não ir a lugar nenhum. Estar em movimento para nada. Sem que isso faça qualquer sentido. Para avançar de fato é preciso ir de um ponto a outro. Esse percurso remete, assim, à ideia de imobilidade. E aquele que não evolui, que não cresce, que não faz progressos está doente, e, finalmente, condenado à morte.
Construí o personagem com base no perfil clássico dos aspirantes ao suicídio. Até o último momento é difícil perceber se ele vai ou não se matar. Paralelamente, procurei dar o mínimo de informações sobre ele, sobre as razões pelas quais pretende suicidar-se. Queria evitar que o espectador estabelecesse qualquer relação afetiva com Badii. Se pudesse, teria rodado todo o filme em planos gerais, de modo a jamais aproximar-me dele, a nunca transformá-lo em herói. Um pouco como no teatro: um homem entra, recita a sua parte, e depois sai. Aquele homem deveria permanecer um mistério, para que fosse mais fácil fazer dele uma abstração e para que a questão do suicídio fosse considerada não um problema desse personagem, mas de cada espectador. Queria registrar a consciência da morte, a ideia da morte que só o cinema sabe tornar aceitável. Essa ideia impõe-se quando a tela fica negra, quando a lua desaparece por trás das nuvens e todas as luzes se apagam. Percebemos que já não há mais nada, que a vida – como o cinema – provém da luz e, ao mesmo tempo, entendemos que o cinema e a vida são uma coisa só. Eu havia deixado um minuto e meio em blecaute. Meus colaboradores achavam que era muito, que o espectador deixaria a sala; mas era preciso que esse negrume se prolongasse, de modo que o público pudesse se confrontar com essa não existência que, em minha opinião, remete diretamente à morte. Quando alguém morre, a primeira coisa que faz é fechar os olhos, e quando o verde da primavera começa a brotar é a ressurreição da vida e da imagem.
A paisagem tinha de ser muito semelhante ao estado de espírito do personagem e, do mesmo modo, a fotografia, a relação luz-sombra, o ocre da terra, a areia que, como uma ducha, cobria o personagem no buraco da montanha. Tudo fora planejado, até os trajetos circulares do automóvel. Mandei construir aquele tipo de estradinha porque não existia, enquanto procurava depressões do terreno que, em certos momentos, escondessem o automóvel, deixando no enquadramento apenas a paisagem. Também era interessante poder ilustrar o processo de nascimento ou de evolução de uma cidade – de um cidade qualquer e não de Teerã em especial -, mostrando zonas em construção, uma pedreira e uma fábrica de cimento. Em minha opinião, o processo de construção de uma cidade é semelhante ao da assunção da responsabilidade, que considero o tema principal do filme.
Os encontros de Badii têm uma lógica narrativa bem definida. O primeiro personagem, o soldado, representa a inconsciência e a juventude. E quando, por fim, os soldados estão estendidos no campo, isto é, para mim, o símbolo desse frescor, dessa juventude. O religioso encarna uma certa rigidez dos discursos e dos saberes, que impõe a priori os limites entre o bem e o mal. Representa as convenções sociais, é a voz com que se exprimiria a ala religiosa radical, que tem grande importância em meu país. Quanto à terceira pessoa, trata-se de um iluminado, um filósofo que tomou consciência dos verdadeiros valores mediante a experiència, pela vida, simplesmente. Daí o seu direito de discorrer sobre a liberdade, de morrer como expressão do livre-arbítrio: “Tu és o único a decidir. Ninguém te impedira”. Ele tem uma visão equilibrada da morte; ele próprio mata pela vida, para aprender a viver. Mata os pássaros para os embalsamar, para os preservar e, de certa maneira, para conservar-lhes a vida, para dar-lhes uma forma de eternidade. Os encontros com esses três indivíduos são uma oportunidade para o espectador – mais do que para o protagonista – refletir; assim, alternei momentos de discussão e de pausa, para que fosse mais fácil, para cada um, consultar as próprias ideias. Trabalhei o ritmo, o equilíbrio das cenas, e quis criar, entre as cinco pessoas que falam, um espaço geográfico, cênico, onde não houvesse conversação. Quem é a quinta pessoa que fala? Obviamente, o espectador.
A especificidade do argumento me impôs um novo modo de trabalhar. Até então, eu costumava escrever os roteiros em casa, sozinho, e só depois saia para encontrar as locações. Daquela vez, fiz o contrário: saíamos de carro, meu filho e eu, e levávamos conosco uma câmera para trabalhar diretamente no local – sem o roteiro. Era uma experiência nova. Captava sensações especiais dos lugares que me rodeavam. Meu filho filmava mesmo sem saber exatamente o quê, enquanto eu procurava interpretar os papéis de todos os personagens. Quando, depois, encontramos o ator principal, em vez de mandar que lesse um roteiro, mostramos-lhe o vídeo. Assim, ele só teria de reproduzir aquilo que vira na fita cassete, substituindo a minha cabeça pela dele. O principal mérito desse método foi o de condicionar os atores não pelas palavras, mas pelas imagens. Mostrar-lhes o vídeo libertou-os do peso do texto, preservando a naturalidade que habitualmente se perde durante a memorização dos diálogos. Na verdade, as filmagens aconteceram sem que dois atores se encontrassem em momento algum. Cada vez que um personagem falava em primeiro plano eu ficava do outro lado da câmera para responder às perguntas e para tentar comunicar-lhe certas emoções. O velho, o jovem soldado e o seminarista certamente devem ter ficado surpresos por não me verem no filme.
A opção por essa forma de trabalhar implicava mudanças, especialmente no posicionamento da câmera e no trabalho com a equipe. Escolhi os objetivos com base na distância que existe entre o motorista e o passageiro que está sentado a seu lado. Embora soubesse como era perigoso rodar todo o filme a partir de um único ângulo, pensava que não deveria colocar a máquina sobre a capota, pois assim perderia a relação emocional estabelecida entre dois indivíduos que se encontram pela primeira vez. Portanto, não havia nenhum operador de câmera. Ela estava fixada na porta do carro e eu ficava com os controles à mão. Quando eu dirigia, o enquadramento ficava rente a meu peito. Enfim, em todo o filme, além de mim e do ator escalado, não havia mais ninguém no carro. O técnico de som estava na capota e eu só ligava a câmera no momento certo. Conversava com o ator não sobre o filme, mas sobre a vida cotidiana, para colocá-lo à vontade e fazê-lo esquecer a câmera. Finalmente, quando nos aproximávamos do tema central, fazia a pergunta principal e apertava o botão de filmar.
Foi com Gosto de Cereja que teve início minha relação com o digital. Tinha rodado a sequência final em película, mas o material havia se estragado em laboratório, e uma vez que nossa primavera dura muito pouco, não conseguiria mais as mesmas imagens, a mesma atmosfera e as cores desse período. Não podíamos esperar o ano seguinte para obter a mesma paisagem. Fui assistir àquilo que meus colaboradores tinham filmado no set com a câmera de vídeo, inicialmente para verificar quanto tínhamos perdido da atmosfera original da paisagem. Percebi, então, que os soldados estavam calmos e à vontade diante da câmera de vídeo. Tinha me esforçado tanto para conseguir naturalidade e veracidade na expressão dos atores diante da câmera de filmar para, depois, perceber que, na realidade, havia uma fase posterior em que eles estavam ainda mais naturais. Convenci-me, uma vez mais, de que uma equipe condiciona e assusta os não profissionais, que jamais poderão estar calmos, enquanto, diante deles, houver um grupo de pessoas ocupadas com coisas antinaturais e a olhar para eles. O último vídeo é “separado” do filme, como um pequeno post scriptum, que recorda os filmes amadores, num clima familiar e íntimo. Não há encenação, apenas espontaneidade; e uma música que serve para transmitir a ideia de vida que irrompe do filme. A sensualidade do trompete de Louis Armstrong em Saint James Infirmary me parecia muito próxima dos poemas de Khayyam, nos quais a alegria chega repentinamente para acalmar a dor.
Depoimento em Kiarostami, de Alberto Barbera e Elisa Resegotti, e reproduzido em Abbas Kiarostami (Cosac Naify, pgs. 243-248).
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