O Inquilino, de Alfred Hitchcock

O rapaz obsessivo, dono de comportamentos peculiares e com medo de fotos de mulheres é o nosso suspeito, o único ao longo dessa jornada. Ele deixa pistas em todo o decorrer, o que logo nos leva a pensar que estamos sendo traídos por Alfred Hitchcock: se o cinema em questão exige uma revelação final, é provável que ele não seja o culpado.

Em O Inquilino, o melhor está nas brechas que o diretor encontra para incitar interrogações. Nada é óbvio como parece. E mesmo que os sinais do desfecho apontem ao livramento, todo o decorrer leva-nos ao caminho contrário: o rapaz vivido por Ivor Novello nasce culpado, assusta-se ao ouvir o vendedor de jornal anunciar mais uma vítima do assassino à solta e tem em sua cabeça a sombra da janela em forma de cruz.

Ele descontrola-se na presença da bela moça (June Tripp), filha dos donos da pensão. Sai à noite, desaparece entre a neblina e tem contra si todos os detalhes que conjugam a forma do suspense – ou, mais ainda, a do terror, como o movimento da porta e do lustre da pensão. Diferente de outros filmes de Hitchcock feitos mais tarde, aqui sabemos menos que o protagonista, estranho enigma que o diretor mantém quase intacto.

O delicado e descontrolado Novello nasce das névoas, certa noite, para alugar um quarto disponível na pensão. Vemos sua sombra aproximar-se da porta; por alguns segundos, seus olhos são nossos – o que contraria boa parte de um filme em que cremos saber muito sobre uma personagem da qual, descobriremos, sabemos quase nada.

Do lado de fora, mulheres são atacadas nas noites de Londres por um assassino conhecido como “Vingador”. O filme abre com o grito de uma moça, primeira vítima apresentada. Existem outras. As pessoas aglomeram-se para ver o corpo. Uma testemunha diz que o assassino cobre parte da face e deixa apenas os olhos à mostra.

A personagem de Novello também cobre metade do rosto com um cachecol. De seus movimentos suspeitos descenderam, com alguma variação, as personagens de Cary Grant em Suspeita e de Anthony Perkins em Psicose – filmes nos quais também precisamos saber menos, ou o suficiente; nos quais somos postos no papel de observadores do descontrole, dos suspeitos pelo excesso ou pela inadaptação, do marido estranho e do filho voyeur.

Como O Inquilino, Psicose leva-nos ao banheiro, ao detalhe fetichista. A diferença tem o sinal de seu tempo, a abertura – literal – no buraco da parede. O locatário, diferente do dono do motel à beira da estrada, não pode ver sua provável vítima enquanto ela banha-se. Para nos provocar, Hitchcock mostra os dedos e os pés da moça parcialmente para fora da água. Ela diverte-se como uma criança. A conversa entre eles, separados pela porta, clama pelo som. Querem falar. Da forma como estão, permanecem irreais, cada um em seu rascunho: ele como o rapaz à parte, ela como a mocinha graciosa e apaixonada.

Hitchcock queria manter o protagonista envolto em um enigma até o fim, fazê-lo desaparecer na névoa para nos fazer pensar. Mas sabia que, com um astro, pelo menos naquela época, isso não podia ser feito: não se vilaniza um astro. Era preciso salvá-lo. Era preciso criar a história do irmão decidido a vingar a morte da irmã, morta pelo serial killer que sempre deixa um bilhete com seu nome – “Vingador” – e sua marca – o triângulo.

A François Truffaut, em entrevista do livro Hitchcock/Truffaut, o mestre do suspense disse que “gostaria que ele [a personagem de Novello] fosse embora, de noite, e que jamais conseguíssemos saber [se era o assassino]. Mas não se pode fazer isso com um herói interpretado por um astro. É preciso dizer: ele é inocente”.

Tal imposição não impediu que se tornasse um grande filme, o primeiro “Hitchcock picture” – como o próprio diretor concordaria. Está cheio de sinais expressionistas e tem um casal idoso (Marie Ault e Arthur Chesney) que ajuda a ampliar o medo. À noite, quando o inquilino deixa seu quarto e parte para a névoa, Hitchcock saboreia as expressões da senhora assustada, com controle invejável, e nos leva aos piores pesadelos de Murnau e Dreyer.

Essas personagens à parte observam o suspeito, culpam-no e, ao fim, transformam-se na multidão que persegue o inquilino, embriagada pelo justiçamento. Ficamos entre esses dois lados, por algum tempo, sem nunca encontrar equilíbrio. Com Novello, temos o efeito psicológico, o homem em sua esfera íntima; com os outros, o social, seu temor, o olhar das vítimas, também o do policial que crê ter encontrado o culpado.

O que esses lados desencadeiam pode ser visto nos primeiros momentos do filme: primeiro, o grito da vítima, a testemunha assustada, o reflexo distorcido; pouco depois, a imprensa que prepara a notícia, seu veículo visto por dentro, pela cidade grande, e a maneira como as pessoas – em close – recebem a informação pelo rádio. Hitchcock celebra o cinema a partir dessa metamorfose, da mulher morta às máquinas, depois às névoas das quais nasce nosso suspeito, alguém que parece amar e odiar mulheres com semelhante intensidade.

(The Lodger: A Story of the London Fog, Alfred Hitchcock, 1927)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Veja também:
Hitchcock no cinema mudo

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