Para Hitchcock, North by Northwest é um “divertissement”, enquanto Vertigo (Um Corpo que Cai), sua obra anterior, é “uma féerie psicológica”, roçando a questão da necrofilia. Para os detratores do cineasta, ele fez uma miscelânea de seus suspenses mais conhecidos. Sem dúvida, Hitchcock retoma temas e subtemas que se espalham em sua filmografia. Nisso não discordam daqueles detratores os que têm o maior apreço pelo artista, que, por sua vez, também observou a propósito do novo filme: “os pintores pintam sempre a mesma flor: começam por pintá-la quando não têm nenhuma experiência, e em seguida a pintam aproveitando toda a experiência que adquiriram”. É a insatisfação do artista e a modéstia em quem quase nunca a usa: a modéstia de reconhecer que, apesar de consagrado há tanto tempo, está sempre aprendendo e progredindo. Se refez agora o final de Saboteur, foi porque não ficou contente com o resultado obtido naquele filme – “os personagens não eram interessantes, os atores não eram bons; e, aliás, aquele não era um verdadeiro filme (…), com erros enormes na cena da Estátua da Liberdade”. Assim – e sem dar importância à significação moral daquele monumento e do Monte Rushmore, o sucedâneo empregado aqui – o diretor usou, apenas como decors dramáticos, as gigantescas efígies na rocha de Jefferson, Washington, Theodore Roosevelt e Lincoln, escalando os quatro presidentes como silenciosos e imóveis “coadjuvantes” dos personagens de carne e osso na sequência terminada da perseguição de Cary Grant a Eva Marie Saint pelos espiões iludidos. Quando se diz que Hitchcock está sempre se repetindo, é o caso de perguntar: e daí? Ou não é expressivo o fato de que alguns diretores – como Ford, Fellini, René Clair e Huston – estejam sempre fazendo reaparecer suas ideias favoritas? Não são grandes, esses diretores, exatamente por isso?

North by Northwest é um “divertissement”, Hitchcock disse. O seu valor não diminui por isso. Como Graham Greene, cujos “entertainments” não raro rivalizam com suas “novels”, Hitchcock tem “divertissements” cinematográficamente tão válidos quanto seus “filmes”. Rear Window (Janela Indiscreta), da primeira categoria, será menos importante do que Vertigo, que se enquadra na segunda? Uma das fitas menos ambiciosas de Hitchcock, The Trouble with Barry (O Terceiro Tiro), é mais hitchcockiano, na execução e em espírito, do que, por exemplo, I Confess (A Tortura do Silêncio), um dos mais sérios entre seus filmes. North by Northwest, “um filme de aventuras tratado com uma certa ligeireza de espírito” (A. H.), não está no mesmo nível de Shadow of Doubt (A Sombra de uma Dúvida), mas é um show de inteligência diabólica de um mestre com a coragem da provocação e a volúpia do brilho. Um crítico inglês, encantado e aturdido, comparou-o aos “perigos de Pauline” – acentuando: “Ninguém ousaria apresentar tal história; ninguém mais poderia atacá-la com tanta convicção”.
Este script, que outro diretor certamente rejeitaria, é ao mesmo tempo o test através do qual Hitchcock se mostra um prestidigitador incomparável e a prova da influência do diretor sobre o cenarista. Um escritor de crescente prestígio como Ernest Lehman (Sweet Smell of Success) – hoje entre os melhores scripters de Hollywood (Executive Suite: Um Homem e Dez Destinos; Somebody Up There Likes Me: Marcado pela Sarjeta) – deixou-se absorver inteiramente pelo estilo do diretor, entregando-lhe, numa ordem exemplar, ideias que Hitch já obtivera de outros cenaristas – o que parece sugerir que essas ideias sempre foram do diretor. Para Alfred, o filósofo, “há uma coisa mais importante do que a lógica, é a imaginação. E se se pensa antes de tudo na lógica, nada mais se pode imaginar. Com frequência, trabalhando com meu cenarista, dou-lhe uma ideia. Ele responde: não é possível! Mas a ideia é boa, se bem que a lógica não o seja. A lógica – atira-se pela janela!”. Essa declaração é suficiente para mostrar como Hitchcock, por filosofia ou pela vontade de tiranizar seus cenaristas, é sempre o autor de todas as coisas de seus filmes. Há poucos diretores assim, tão personalistas; só os maiores do cinema contemporâneo. E não há outro tão sádico – e que confesse o seu sadismo com tanta naturalidade, quando diz gostar “de brincar com os espectadores como o gato com o camundongo”.
Há de tudo em North by Northwest – tudo vale neste suspense em VistaVision. E Saul Bass no princípio: quadro verde, linhas roxas que aparecem e se entrecruzam, fusão do desenho abstrato em perfeita superposição de suas linhas com as de um edifício de Nova York em plano fixo. Um Saul Bass, é verdade, menos “vertiginoso” do que o de Vertigo. O filme começa com um dos vícios (o da aparição furtiva) do diretor, perdendo o ônibus na Madison Avenue. E logo depois é a entrada de Cary Grant, o protagonista: um homem da publicidade, seria apenas mais um soldado do batalhão do “terno cinzento” se Hitchcock precisasse mais de três ou quatro cenas (o ditado à secretária no táxi; os três martinis iguais à frente de três homens igualmente vestidos) para pintar um retrato que já exigiu de outros diretores toda uma fita. E, abruptamente, começa para Cary Grant um pesadelo semelhante ao de Henry Fonda em The Wrong Man (O Homem Errado), que Hitchcock “refaz”, ou resume sem atmosfera kafkiana, na primeira meia hora de North by Northwest. Tomado por um agente secreto americano, Grant é raptado, embriagado e quase assassinado por James Mason e parceiros de espionagem (Martin Landau, Adam Williams, Robert Ellenstein). Ao escapar do precipício, da perseguição dos agentes inimigos e de uma colisão tríplice (no meio, o carro da polícia), o herói esta num carro roubado e no maior pileque do mundo. Ninguém, nem sua mãe (Jessie Royce Landis), acredita na sua aventura. E daí a pouco, quando um espião mata um conferencista na ONU e o herói, atônito, segura a faca na frente de vinte testemunhas, as coisas se complicam. A polícia (sempre tonta nos “hitch-thrillers”) sai no rastro de Grant, que vai à caça do agente com o qual foi confundido, enquanto o estado-maior do FBI (Leo G. Carroll, o nº 1) decide não intervir. A segurança dos Estados Unidos exige que o inocente publicista, cercado pela lei e pelo crime, saia atrás de um homem que não existe. O suspense, então, toma o trem para Chicago – e não terminará ali.
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Durante a primeira meia hora de North by Northwest, Hitchcock parece animado com a ideia de refazer The Wrong Man, mas em outro tom, como se experimentasse contar a mesma história de duas maneiras diferentes, senão antagônicas. O “homem errado” de Cary Grant reage a todos os complots como personagem de comédia. Até o método usado pelos asseclas de Vandamm (James Mason) na preparação do “acidente” é esticado para a semicaricatura: com um litro de bourbon no estômago, o herói é posto na direção de um carro roubado e solto na estrada ziguezagueando um precipício. Esse tipo de suspense é o mais elementar para qualquer outro diretor, mas funciona perfeitamente dentro do sense of humour de Alfred, o sinistro, que insere em North by Northwest algumas citações de trechos escolhidos, como aquela estrada onde o mesmo Cary Grant talvez estivesse com a intenção de atirar Joan Fontaine no abismo, em Suspicion (Suspeita).
O tema do inocente que se toma por criminoso (ou agente secreto, como agora) – em sentido mais amplo: o erro sobre a identidade de um personagem – é um dos favoritos de Hitchcock, atravessando várias de suas fitas: o sósia do diplomata assassinado no início de Foreign Correspondent; o herói burguês em férias que os espiões saem perseguindo nas duas versões de The Man Who Knew Too Much (O Homem que Sabia Demais); as duas faces de Kim Novak, causando dois equívocos, em Vertigo. O momento de mais seriedade desse tema veio em The Wrong Man. Agora volta para o que der e vier – e vai arrastando Cary Grant por alguns dos estados unidos. Ao evoluir horizontalmente da metrópole para o interior, a ação de North by Northwest não está no itinerário da de The 39 Steps? A caminho, no trem Nova York-Chicago – atrás daquele Kaplan com o qual continua a ser confundido por Vandamm, e tendo no seu rastro toda a polícia – o perseguidor-perseguido esbarra com uma loura, fascinante e imprevisível, tanto que o esconde dos policiais e o delata (sem que ele desconfie) aos espiões inimigos. E então, na cabina de Eva Marie Saint, lança-se Hitchcock à superação de Hitchcock: descobrindo em Eva um sex-appeal que a atriz certamente havia perdido no Actors Studio, obriga-a à metamorfose que quase dá a Eva o sensualismo de Ingrid, Grace e Kim – naqueles beijos de Notorious (com Cary Grant), Rear Window e Vertigo (ambos James Stewart). E essa Eva new look (ou hitch look) atira-se a Cary Grant para um longo beijo, com etapas e interrupções (ou suspense), numa movimentação quase de ballet: se tudo rodou para James & Kim, no beijo-carrossel de Vertigo, agora rodam os artistas. Hitchcock tem o título de mestre do suspense. Mas, com quatro dos “dez melhores” beijos da História do Cinema, não pode ficar com aquele título apenas.
Cary Grant de red cap, como carregador de bagagem na central de Chicago – e os policiais correndo atrás de todos os bonés vermelhos, como baratas tontas: suspense anti-policial. Já está perto a sequência em que North by Northwest se afasta de todos os modelos, mostrando como Hitchcock, criador na repetição, é o mesmo na hora da invenção. Numa estrada deserta, um homem só: Cary Grant, que ali tem encontro marcado com Kaplan. Passa um carro, passa outro – pouco movimento. A câmera, seguindo o olhar do personagem, examina a paisagem: ao longe, espalhando fumaça, está um avião. Silêncio absoluto. À beira da estrada, surge outro homem. Será Kaplan? Não é; está esperando o ônibus e observa antes de tomá-lo que aquele avião, estranhamente, está desperdiçando inseticida em lugar onde não há nenhuma plantação. O ônibus parte, Grant de novo fica só, vem o avião. O mais insólito combate: avião vs. homem. A tensão num crescendo, o homem se atira ao solo, o avião passa; antes que volte o homem corre para ocultar-se sob a plantação de trigo – o avião lança a nuvem de inseticida sobre a plantação. Com um só personagem, opondo-o a uma máquina (e reduzindo-o quase à condição de gafanhoto), Hitchcock acabou de construir um de seus mais admiráveis exercícios de suspense. E, como está num vale-tudo, termina essa mistura de surrealismo e science-fiction com uma gratuita, mas esplêndida (e eufórica) explosão: o avião se choca contra um caminhão-tanque.
A coragem da provocação, outra qualidade hitchcockiana, não pode exprimir-se melhor do que no andamento final de North by Northwest. Já em Chicago situando Eva Marie Saint (amante do espião comunista Vandamm) na mesma situação (FBI & sexo) de Ingrid Bergman em Notorious (mulher do espião nazista Claude Rains), vira bruscamente ao entrar na Dakota do Sul, para o epílogo “democrático” de Saboteur. As últimas sequências, na casa tão moderna que quase parece marciana, nas luzes do campo de aterrissagem improvisado e no corre-corre na hora de tomar o avião, Hitchcock vai passando do terreno de science-fiction para o do “filme-em-série”. Quem teria essa coragem? Quem faria essa provocação? A linha horizontal da narrativa torna-se vertical no monte Rushmore – “homem errado” e “falsa espiã” subindo e descendo pelo nariz de Washington e Jefferson ou escorregando pelos cabelos de Lincoln e quase raspando o bigode de Teddy Roosevelt. Eles e os espiões.
E o suspense, que andou por todos os caminhos, termina com a suspensão da heroína pelo herói, em corte-elipse que tira o filme da beira do abismo para o leito superior da cabine do trem. O trem entra num túnel – “é um símbolo fálico; mas não é preciso dizer isso a ninguém”, revelou o autor.
Correio da Manhã (29 e 30 de janeiro de 1960)
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Boa tarde. Continue, sempre que possível, a postar comentários e artigos de cinema do passado. É excelente conhecer opiniões sincrônicas, ou seja, publicadas na época em que as obras foram lançadas. Muito obrigado pela atenção e um forte abraço.
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