Há alguns poucos momentos felizes no primeiro filme dirigido inteiramente por Alfred Hitchcock, O Jardim dos Prazeres. No melhor deles, duas moças despem-se em quadros diferentes; ao centro, o cineasta estabelece um terceiro, no qual vemos suas peças de roupas unirem-se em tela, o único “toque” possível entre as damas, uma sugestão erótica.

Fica por aí. De resto, entre efeitos cômicos e nacos de melodrama, o realizador em nascedouro não sabe que caminho tomar. É uma experimentação sem ousadia, a busca de um jovem cineasta pela forma que não encontra, pela unidade que com muito custo se faz, pela emoção que não sentimos. E, quando a sentimos, resta nos detalhes.
Apenas dois anos depois, o mesmo Hitchcock toma as rédeas de seu cinema, delineia formas com precisão, tem segurança e alcança o gênero que lhe fará conhecido: o suspense. Em muitos momentos sugere o terror. Em O Inquilino, pensamos saber o tempo todo quem é o assassino de mulheres que aterroriza Londres; o realizador coloca-nos ao seu lado, expõe seus medos, vacilos, retornos e sua dubiedade. Um belo efeminado, às vezes bruto
Em resumo, e ainda que haja grande capacidade para repelir o espectador, encontramos nele um humano – um estranho ser humano como as grandes personagens de Hitchcock. Talvez um assassino, alguém deformado como as figuras expressionistas do cinema alemão da mesma década, rapaz frágil e observador como o futuro Norman Bates.
Para além do humano, Hitchcock faria outra grande descoberta em O Inquilino: é preciso estabelecer um clima. O que, em seu caso, também se confunde com alma. Determinadas personagens em um determinado universo tendo de lidar com o mal – termo possível, uma vez alargado, para definir a situação ou o problema que alimenta a história.
Eis a grandeza do suspense: é sobre construir uma redoma e fazer com que as personagens lidem com suas particularidades, e não impor um golpe – o mal carregado por sustos e violência – como se dá, na maior parte das vezes, com o gênero terror. No suspense, quase sempre enxergamos o mal, sabemos tanto quanto as personagens; esperamos e analisamos seus movimentos, assistimos às suas fraquezas, assustamo-nos com atitudes.
A descoberta dos detalhes e a calibragem do tempo também são fundamentais: em O Inquilino, vale notar como o cineasta mostra o movimento da porta a partir de sua parte inferior, com a saída e a chegada do protagonista na noite de um assassinato; ou, antes, como trabalha com a percepção da senhora, a dona da pensão, enquanto ela ouve, do seu quarto, os movimentos do inquilino e passa a desconfiar que ele é o assassino.
Outro ponto revela-se essencial na formação do grande cineasta: a câmera é cúmplice e, no universo em que temos de lidar com o mal, todos estamos presos às maiores ou menores revelações. Segui-la é se deparar com o incômodo, com a culpa (das personagens), ao mesmo tempo com uma atração difícil de explicar e que envolve o fetichismo próprio do olhar, ver o proibido, o belo e o maldito, o sentimento de estar dentro.
O bom cinema, em Hitchcock, não se resume ao suspense. O gênero será apenas uma marca a acompanhar o diretor – terreno no qual ele bem se desenvolve. O fracasso de O Jardim dos Prazeres nada tem a ver com o melodrama. Seu maior problema está no aspecto automático, paralisante, na falta de criatividade e de personagens vivas.
O Ringue é um bom exemplo de como Hitchcock pode se adaptar aos mais diferentes materiais sem abrir mão das características que lhe dão estofo. Um drama sobre homens que amam a mesma mulher, sobre uma mulher que ama dois homens, dois lutadores de boxe. Ela sente-se atraída por um deles quando o mesmo derruba o outro sob a lona do circo.
O perdedor ainda consegue se casar com a dama. Ela, por sua vez, mantém sobre seu piano a foto do outro. Descobre que ama o marido apenas na noite da segunda luta entre os dois: da plateia, observa como o combate ultrapassa os limites do ringue. Desnorteado, com sua visão trépida e alucinatória reproduzida pela câmera, o marido ouve a voz da mulher, enxerga sua face, encontra forças para ganhar a luta.
A criatividade de Hitchcock às vezes soa como puro exibicionismo, como no beijo da filha em seu pai, feito com câmera subjetiva, na aproximação do lábio dela à lente, ao se encontrarem em Paris, em Champanhe. Outros casos, como no momento em que a mulher assiste à primeira luta dos concorrentes em o Ringue, através da abertura na lona do circo, parecem-nos um achado, um daqueles momentos que tornam um filme maior.
Essa abertura na lona é uma alusão à redução oferecida pelo cinema, condição da arte de enquadrar e cuja natureza sempre deixa algo para fora. O que poderia ser uma possibilidade de olhar não permite que vejamos muito – nem que a personagem encontre respostas ao observar a luta dos homens a distância. Hitchcock passa a brincar com esconderijos ao colocar elementos inusitados no quadro e adotar ângulos ousados.
O quadro com o qual nos provoca nessa sequência de O Ringue dá lugar ao campo à medida que a ação continua. As possibilidades são outras. O quadro limita, o campo expande. O fora de campo, por sua vez, como no momento em que vemos as vítimas do boxeador retornarem machucadas, vai além: pede por nossa completude e imaginação. Um bom exemplo para o uso do fora de campo – um dos melhores no cinema de Hitchcock – será visto em seu último filme mudo, Chantagem e Confissão, que também ganhou uma versão sonora.
De 1929, período de transição para o uso do som, Chantagem e Confissão é uma pequena obra-prima sobre desejo e culpa, sobre como um estupro seguido de assassinato – o estupro perpetrado pelo homem, o assassinato por sua vítima – transforma-se em questionamentos sobre se entregar ou não às autoridades, sobre pagar ou não pelo crime cometido.
O fora de campo ocorre no momento em que a protagonista é abusada por um pintor. Vemos sua mão atravessar o vão entre a parede e a cortina e alcançar a faca sobre o móvel. O diretor não precisa mostrar o que vem depois. Somado aos perfeitos movimentos de câmera e ao requinte de detalhes, Chantagem e Confissão apresenta um criador com pleno domínio de sua força, com frequência sagaz e irônico, um cineasta envolvido com o mal o suficiente para não nos deixar despregar os olhos da tela.
(The Pleasure Garden, Alfred Hitchcock, 1925)
(The Lodger: A Story of the London Fog, Alfred Hitchcock, 1927)
(The Ring, Alfred Hitchcock, 1927)
(Blackmail, Alfred Hitchcock, 1929)
Notas:
O Jardim dos Prazeres: ★★☆☆☆
O Inquilino: ★★★★☆
O Ringue: ★★★★☆
Chantagem e Confissão: ★★★★★
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
ACOMPANHE NOSSOS CANAIS: Facebook e Telegram
Veja também:
O Homem Errado, de Alfred Hitchcock