Na trilha do tio Oscar, por Paulo Emílio Sales Gomes

Ligo pouco para os prêmios anuais da Academia de Hollywood. Se outro dia fiquei até de madrugada na frente da TV, foi porque sou, como qualquer um, envolvido e constrangido pelo mundo.

Como milhões de contemporâneos, eu sabia que Marlon Brando seria um dos escolhidos e recusaria o prêmio. Esperava perfidamente algum alimento para minha birra contra o cinema estrangeiro.

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É sabido que a implicância, como o ódio, não constrói. De maneira que, logo após o discurso da índia [que recebeu o Oscar de Marlon Brando, por O Poderoso Chefão, como forma de protesto à maneira como os americanos tratavam os índios], fui dormir frustrado e descontente com as horas perdidas.

Se sou indiferente ao prêmio, o seu nome, Oscar, há muito tempo me intriga por uma curiosa série de circunstâncias.

A história ou a lenda, como veremos, é conhecida.

Em 1927 quando o prêmio foi criado, uma secretária da comissão organizadora, Mrs. Mathieson, teria exclamado ao ver o modelo da estatueta: “Mas é a cara do tio Oscar”, e teria sido assim o batismo.

Lá por 1950, Richard Griffith, conservador da Cinemateca do Museu de Arte Moderna de Nova York, estava preparando uma importante retrospectiva dos premiados da Academia. Pretendia editar na ocasião um belo catálogo que incluía material histórico a respeito da criação do prêmio, e achou que seria curioso publicar uma fotografia de época do tio de Mrs. Mathieson. O projeto não vingou mas Griffith me contou um dia os resultados.

Localizou Mrs. Mathieson em Chicago, mas ela nunca teve tio, só tias em grande número e todas solteiras. Griffith tinha um lado maníaco, uma espécie de obsessão por coisas sem muita importância. Ou talvez não. Eu o vi anotando as passagens de um filme em que apareciam moscas. De qualquer maneira, ele se empenhou a fundo para resolver o mistério do tio Oscar.

Fez o levantamento de todos que tiveram algo que ver com o prêmio em 1927. Sua mulher e sua secretária não fizeram praticamente outra coisa durante alguns meses senão escrever para dezenas de pessoas que eram em seguida eventualmente entrevistadas.

O enigma permaneceu insolúvel; Richard Griffith enviou uma última circular aos órgãos corporativos da indústria e renunciou.

O tio Oscar reapareceu na minha vida alguns anos depois, em Cannes. André Bazin me anunciou que uma das curiosidades frívolas, segundo ele, do Festival seria a presença do homem que deu seu nome ao prêmio. Ele teria imigrado para a Europa há muito tempo e se chamaria não Mathieson mas Oscar Matersohn. Estava velho e vigoroso e era dono de um restaurante em Monte Carlo.

Alguns jornais falaram dele mas o tio Oscar acabou não aparecendo nas solenidades. Não fiquei até o fim do Festival e mais tarde fiz perguntas a Bazin. A respeito de Oscar ele informou que se tratava provavelmente de uma tentativa de repetir a farsa que tinha tido tanto sucesso no Festival anterior, quando alguns jovens jornalistas sussurraram a respeito da presença de Greta Garbo na Côte D’Azur. Durante uma semana uma senhora de véu negro foi constantemente assediada e fotografada pelos jornalistas estrangeiros até o dia em que foi revelado que ela tinha sido contratada para o papel num bairro alegre de Marselha.

Tio Oscar ainda surgiu uma vez, na Bahia. No Mercado Modelo havia um árabe, Chalub, vendedor de quinquilharias turísticas e amigo de Jorge Amado e Walter da Silveira. Eu comprei muito boizinho e pavão na tenda de Chalub e um dia, provocado por Walter, ele nos falou de Oscar: um americano que foi big em Hollywood, que deu seu nome ao prêmio mais importante da América e que, por motivos obscuros, viera morar na Bahia logo depois da Revolução de 1930. Chalub era discreto mas aparentemente o americano cuidava de contrabando. Insisti em conhecê-lo e depois de muitas dificuldades o árabe me apresentou numa venda um homem vermelho, de uns sessenta anos e sotaque carregado.

Confirmou que tinha vivido em Hollywood, deu respostas evasivas quanto ao prêmio e quando soube que Walter da Silveira e eu éramos críticos de cinema nos olhou com complacência e disse uma frase que se transformou para mim num dogma: “As fitas são sempre mais interessantes do que as críticas”.

Ainda tentamos revê-lo, mas Chalub também tinha uma vida complicada, acabou assassinado, e Oscar eclipsou-se novamente.

Há algumas semanas, no Rio, conversava-se sobre umbanda a propósito de um documentário que está para ser feito e alguém contou a descoberta, nas imediações do Jardim Botânico, de um terreiro animado por um velho norte-americano.

Quando eu ouvi falar em Tenda do Tio Oscar me perguntei fascinado: “Seria possível?”. Pois pelo jeito é. O umbandista ianque viveu em Hollywood, na Côte D’Azur e na Bahia, além de um período na Índia que não estava no programa.

De qualquer maneira, é um belo assunto. Não sou tão inimigo assim da influência estrangeira. Me agrada ver o prêmio da Academia de Hollywood metamorfoseado por vias tortuosas num documentário brasileiro.

Jornal da Tarde (“Na trilha do tio Oscar (o do prêmio de Hollywood)”; 12 de abril de 1973)

Veja também:
A ópera de cavalo e do pobre, por Paulo Emílio Sales Gomes

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