Os irmãos Ethan e Joel Coen atribuem o poder de Onde os Fracos Não Têm Vez à obra original, de Cormac McCarthy. Em mais de uma entrevista, disseram que apenas perseguiram um bom livro. Modestos os irmãos. Faltou lembrar que alguns efeitos do filme só podem ser obtidos pelo cinema, essa arte de imagens em movimento.

No terreno do neo western, eles conduzem-nos a uma porção de detalhes caros – marcas, objetos, animais – que precisa estar ali. A ela, somam o tempo dilatado, o reino da impessoalidade e da violência dos Estados Unidos dos anos 1980, visto antes em Gosto de Sangue. Os rituais do antigo gênero consagrado são ignorados.
Os cineastas partem de uma história incomum – sem um protagonista claro, com um vilão gritante – que só nos permite enxergar sua real dimensão nos já citados detalhes. Onde os Fracos Não Têm Vez é muito mais que um filme policial sobre conflitos próximos à fronteira com o México: é sobre “saborear” um microcosmo e temer o tempo.
Basta pensar no momento em que o assassino Anton Chigurh (Javier Bardem) coloca sobre um balcão a embalagem amassada do que parece ser um chocolate. Por alguns segundos, os Coen mostram a expansão do objeto, representação perfeita do que esse filme pretende e põe em curso – o que nos faz lembrar do copo com água borbulhando em Taxi Driver.
Pouco depois, no mesmo balcão, o mesmo Chigurh joga uma moeda e, de novo, corrói o espectador com o tempo. O balconista precisa escolher entre cara e coroa, e o resultado pode custar sua vida. Chigurh não trai o jogo do acaso. Em seus domínios existem regras próprias e sua crença na sorte faz com que toque outra personagem, o xerife Ed Tom Bell (Tommy Lee Jones), que vive uma crise de fé à medida que se aproxima da aposentadoria.
Como crer em Deus em um mundo como tal? Em diálogo extraordinário, travado perto do fim com um velho amigo em casa isolada, Ed afirma que esperava um Deus mais evidente com o avanço à velhice, “mas isso não aconteceu”. Ed, no alto de sua consciência, não aceita um mundo no qual a vida pode depender do giro da moeda.
Em Onde os Fracos Não Têm Vez, encontramos três homens diferentes: o serial killer que nos permite sentir esse tempo insuportável em que cada instante conta; o caçador que, por acaso, esbarra em uma mala de dinheiro e é perseguido pelo primeiro; e o xerife que reflete sobre seu tempo – dando a nós a dimensão histórica em questão.
Na abertura, o oeste seco e suas planícies somam-se à narração do homem da lei, sempre ponderado: Ed não compreende o que faz um jovem preso, condenado à cadeira elétrica, ainda sustentar tanta frieza segundos antes de sua execução. Não compreende como sua nação – mas não só ela – chegou a esse estado em que se mata por tão pouco, em que os antigos códigos de honra não valem nada perante a gratuidade que se impõe.
Na ponta oposta está Chigurh, o psicopata, a frieza em estado puro. Em seu caso, não se trata necessariamente do resultado dessa sociedade sobre a qual Ed lamenta. Chigurh mata com facilidade por não ter qualquer empatia. Homens como ele sempre existiram. E em momento algum Ed poderá encará-lo; como dizem alguns, é um fantasma.
Visto de fora, Chigurh torna-se a exemplificação fácil da irracionalidade. Alguém, a certa altura, tenta explicá-lo – o que só faz aumentar o medo. É Carson Wells (Woody Harrelson), que entra no jogo um pouco mais tarde e conhece o matador de aluguel. Segundo ele, por pior que seja, Chigurh tem princípios – e estes nada têm a ver com dinheiro ou poder.
A terceira personagem de peso é Llewelyn Moss (Josh Brolin). Homem esperto, consciente, ex-militar, mas humano, ele depara-se com a cena de um crime, uma transação de drogas que resultou em matança. Dali, sai com uma mala de dinheiro e, na mesma noite, tomado por seus pesadelos e pela própria consciência que o cobra, resolve voltar ao mesmo local para dar água a um mexicano baleado no banco de uma caminhonete. Tem empatia.
Chigurh é chamado para caçar Moss. Todas as cenas de ação seguintes são puro pretexto, outra vez, para os Coen mirarem no cinema de detalhes, muitos insuportáveis. Por consequência, nada supera os momentos em que o serial killer prepara-se para retirar um projétil da própria perna, com injeções e o cuidado para pinçar cada partícula de metal incrustada na pele, exercício de dor celebrado com calma.
Sequência alguma de ação pode superar esse momento sublime. Também por ele entenderemos que Chigurh não deixará, em qualquer hipótese, o centro da arena: ele é servido pelo jogo, cada vez mais a invadi-lo, com objetivo claro, algo como uma máquina. Por outro lado, Moss ainda pode se deixar levar por situações à parte e que nada devem à trama, como os flertes com uma mulher na piscina do hotel.
Durante o filme todo, esses três homens aproximam-se mas não se olham nos olhos um momento sequer. Gravitam em um mesmo mundo sem que possam pedir ao outro uma explicação. E se esse universo é igualmente regado ao acaso, como no acidente de carro ao fim, tais acontecimentos só reforçam quem pode ou não seguir em frente.
Na embalagem amassada, na moeda, na madeira marcada pelo impacto da fechadura, no pássaro que escapa ao tiro, nas botas que marcam o chão da delegacia, entre outros exemplos, os Coen lançam em nós os pequenos grandes efeitos do cinema. Certamente, e em ricos detalhes, podem ser descritos pela literatura. O cinema, por outro lado, prende-nos ao tempo e, como fazem tão bem esses irmãos cineastas, expande-o ao aterrorizante.
(No Country for Old Men, Ethan Coen, Joel Coen, 2007)
Nota: ★★★★★
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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Veja também:
Teorema, de Pier Paolo Pasolini