O primeiro encontro de Gary e Alana é o resumo do que veremos ao longo do divertido Licorice Pizza: ele está em uma fila, limitado à vida de estudante, à adolescência; ela, um pouco mais velha, trabalha como ajudante de fotógrafo e não vê possibilidade alguma de dar bola para o menino bom de papo – ainda que, sem perceber, já o faça.
A química entre ambos é incomum. Vemos ele envelhecer à medida que ela, do início ao fim, não consegue assumir seus sentimentos e de vez em quando é infantil. O filme de Paul Thomas Anderson baseia-se nessa relação, à medida que situações curiosas pipocam ao lado, personagens secundárias ganham peso e o estranho mundo real cobra pedágio.
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Anderson realiza um filme apaixonado por um tempo, uma ode à juventude, direito de dizer bobagens e viver sem amarras. Em momentos, pensamos estar em Vício Inerente e quase nunca chegamos ao amargor de Boogie Nights. O diretor, no campo da comédia, tem sua maneira de dizer o quão babacas podem ter sido os anos 1970 e, ao mesmo tempo, justificar seu clima apaixonante quando duas pessoas apoiam-se em si mesmas.
Algumas dessas testemunhas – como Alana e Gary – só podiam olhar para o futuro, mesmo que outros – a família, alguns artistas, o próprio Anderson – insistissem no passado. A cafonice recheava os cantos, os carros turbinados terminavam nas mãos de qualquer um, as mansões de gente arrogante eram verdadeiros palácios de ostentação.

Há algo para tocar e o que nos soa inimaginável. Sentimo-nos um pouco como Gary e Alana, cujas corridas devem ter algum sentido, flutuando no espaço dos exageros, sob a impressão de que tudo é possível, nas cores berrantes e nos dias de sol. Eles empolgam-se com pouco, até mesmo, no caso dele, com uma fila de carros à espera para encher o tanque, quando a política internacional levou à falta de combustível.
Estudo de uma época sob o véu pessoal de seu criador, Licorice Pizza é – e quase não deixa ver – também um estudo de personagens. Quanto mais sentimos seu aparente descompromisso com alguma história, mais percebemos o quanto Anderson embrenhou-se nessa terra de gente simples em busca de algo, um amor ou um negócio.
Daí a mágica da obra: eis uma história de amor que só existe à base de trombadas, de temperamentos difíceis, de orgulhos guardados, de pessoas que se compreendem na menor troca de olhar, às vezes em silêncio, como na cena em que Gary e Alana ligam um para o outro e não falam nada, apenas seguram seus telefones. A mensagem entendemos de cara.
Se Gary só pode ter Alana à sua maneira, e se ela só pode assumir o amor por ele quando percebe que as pessoas vivem vidas sem sentido, o impossível faz-se. E Anderson, ao nos retirar do lugar comum, realiza um filme sobre o essencial da juventude e seus pequenos momentos que, às mentes em jogo, assemelham-se à conquista do Everest.
Gary, interpretado por Cooper Hoffman, tem o cabelo jogado na frente da testa, espinhas na face e está sempre em busca de algum novo negócio que possa render dinheiro. Envolve-se com a venda de colchões d’água quando isso se torna moda e, mais tarde, ao saber que a prefeitura liberará o uso de máquinas de pinball, abre sua própria casa de jogos.
De família judia, Alana (Alana Haim) tem os dentes desalinhados e infla os olhos quando ouve alguém mais velho falar, alguém experiente para fazê-la se sentir dentro de algum universo oposto ao de Gary – alguém como a personagem de Sean Penn, um ator veterano, ou a de Tom Waits, que mais parece uma imitação de Samuel Fuller.
Em algum ponto, Anderson propõe o encontro – ou a batalha – desse espaço fulleriano – com seus homens que adoram falar de proezas, das guerras que lutaram, das atrizes que tiveram ao lado – com o clima doce, quase indolor, de American Graffiti, o tipo de universo em que os adolescentes estão cansados de servir sempre aos mesmos papéis.
(Idem, Paul Thomas Anderson, 2021)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
O Último Duelo, de Ridley Scott