Desajuste Social, de Pier Paolo Pasolini

O grupo de rapazes fala sobre nada relevante. Joga conversa fora. Zomba de um vendedor de flores – alguém que ainda acredita na importância do trabalho. Esse grupo come pelas beiradas e tem ali seu representante máximo, Accattone, apelido para Vittorio (Franco Citti), alguém que acreditamos estar sempre perto de desabar.

O primeiro filme de Pier Paolo Pasolini pertence a essa figura errática, difícil de descrever; alguém que só pode encontrar seu alívio na morte – “agora estou bem” – e que circula, em seus esforços para sobreviver, entre a periferia romana, atrás das pessoas que conhece, de suas conexões restantes – filho, mulheres, amigos – antes do destino certo.

Accattone não vê sentido no trabalho nem na vida: ele sabe que a imposição do sistema que recusa não lhe dará trégua. E para tal, Pasolini não confere consciência clara, a das personagens planas com as quais estamos acostumados, dotadas de uma psicologia de aproximação. Nesse cinema de rompimento, o protagonista é animalesco, visto quase sempre de fora, devorando e sendo devorado pela sua fauna.

Sua jornada não tem qualquer sentido senão a da revelação de uma realidade social, ou de um desajuste, como propõe o título brasileiro. Desajuste, sobretudo, narrativo: não há pontos de virada, não há momentos de tensão dramática, não há revelações para além do que já está dado nesse mesmo universo, como se todos os dias fossem como outros.

Há um efeito episódico. Suas elipses não nos oferecem a noção exata do tempo transcorrido e nos pregam nos mesmos locais: Accattone com os amigos, Accattone atrás do filho e da ex-mulher, Accattone perto das prostitutas que trabalham para ele, cafetão e vagabundo. Ao encontrar uma nova mulher, aparentemente intocada pelo mundo de corrupção que a cerca, ele diz: “Feliz de você que não entende nada”. Logo ela entende. 

A mulher em questão é Stella (Franca Pasut), destinada, como muitas da periferia, a se tornar prostituta. Ela luta com si mesma para não se entregar a esse trabalho enquanto Accattone divide-se entre seu patrão e um homem ciumento e irracional. Ele depara-se com sua nova descoberta por acaso, quando ela separa pilhas de garrafa em meio à favela.

“É um trabalho pesado, não é?”, questiona ele. “É questão de hábito. E, sendo preciso, basta fazê-lo”, ela explica, para depois dizer: “Pelo menos não morremos de fome”. Para tal hábito não há adaptação possível no caso de Accattone. Ele tenta trabalhar como carregador de ferro-velho e basta um dia para perceber a dificuldade de se ter algumas liras.

Pasolini acertadamente nunca nos deixa com um pingo de moralismo. Nem poderia. E nem por isso as personagens do poeta são completamente desalmadas. O sustento é a forma, o painel, a observação do artista e suas fusões através de uma montagem às vezes desconcertante e do encontro do real com a música de Johann Sebastian Bach – efeito de “sacralização”, como observa Luiz Nazario em Todos os Corpos de Pasolini.

Para seus vagabundos e prostitutas, nessa Itália pobre que “machucava” os olhos da burguesia, o diretor permitiu que fossem mostrados com integridade, sem nunca corrompê-los pelos aspectos românticos, sem nunca buscar embelezá-los a ponto de se candidatarem a musos e musas, como se deu nos filmes de Fellini ou Bolognini nos quais Pasolini trabalhou nas adaptações. Sua beleza não passa pelo efeito da beldade que o cinema impõe, justamente porque não quer formar símbolos para uma certa Itália.

Pasolini não opera no limite do mito, do artificial e do esteticamente pomposo. Suas personagens são frias, figuras de quadros maiores. “No seu cinema, as imagens flutuam; cada cena parece independer do todo. Os elementos ficam soltos, sem costura, como se a montagem fosse desprezada – e, com ela, a linearidade da narrativa – em função da beleza das imagens ou do sabor das histórias”, escreve Nazario no mesmo livro.

Em Desajuste Social, Pasolini dá-nos um homem e suas passagens, sua inexatidão, seu instinto calcado apenas no movimento e na certeza de que só cabe naquele universo marginalizado. Suas mulheres e sua estranha tendência à redenção. Alguém perseguido pelas autoridades e seus grandes olhos, para quem a fome é um vício.

(Accattone, Pier Paolo Pasolini, 1961)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Veja também:
Bolognini, moralista, por Antonio Moniz Vianna

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