A estrutura dura, às vezes intransponível, quase nos faz descrer do amor retratado. Não estranha se, impedidos de penetrá-lo, recuamos, sem se deixar levar pelas palavras de Honoré de Balzac em meio ao tecido opaco, belo, de Jacques Rivette. Se em filmes anteriores do autor encontrávamos a navegação, aqui ficamos com um efeito de câmara.
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As personagens não se fazem ouvir nesses espaços de jogos deliberados, de intenções nem sempre fáceis de pescar. E mesmo quando se abre ao baile, em alguns momentos de A Duquesa de Langeais, o efeito ainda é aprisionante: os amantes são impedidos de transmitir pela pele o que sentem de verdade. Qualquer toque ou apertão soa invasivo.
A beleza do filme, também conhecido no Brasil como Não Toque no Machado (do original, também o título da primeira versão do romance), reside nessa impossibilidade. Não compreendê-la significa não embarcar: é todo um emaranhado de encontros para selar o impossível, vitória das convenções e regras sobre os desejos.
O primeiro a se ver preso é o homem, Armand de Montriveau (Guillaume Depardieu), dono de histórias emocionantes que a mulher, Antoinette de Langeais (Jeanne Balibar), deseja ouvir noites a fio. A cada reencontro, o amor dele é mais claro e, em caminho contrário, ela faz de sua presença apenas o acessório para matar o tédio, falar do mundo.
As histórias dele são finitas. As investidas não param. Armand sofre na prisão ao qual foi lançado, ao mesmo tempo que dela talvez não queira escapar. A bela duquesa, para ele, é poesia, cuja convivência é algo a ser traçado com calma. E aí reside o jogo curioso do filme de Rivette: no tabuleiro posto, a consumação do amor significa encerrar a partida.
A duquesa não reconhece a posição do amante declarado: segue firme com sua máscara de mulher da alta sociedade impedida de viver aventuras senão pela via do relato, ou pela aproximação do rosto ao rosto do outro, do flerte que não deixa ver além do toque sobre as vestes. Ao ser sequestrada por ele, a certa altura, a duquesa percebe a que ponto a loucura do amor – ou a do jogo, ou a do caminho à poesia – pode alcançar.
A segunda parte busca a dor da mulher não correspondida. O filme aprofunda sua estrutura densa. Na confissão do amor dela reside o fim do jogo para ele, que não quer mais ver a amada. A declaração de Antoinette, para Armand, esvazia o sentido dessa relação.
No início e no fim, é dado o destino da duquesa: ela entregou-se ao seu grande amor, Deus, e se tornou uma carmelita de pés descalços em um convento na Espanha, de frente para o oceano. A renúncia de Antoinette abre novo caminho para a procura de Armand; ambos só podem viver o amor quando há barreiras a ultrapassar.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, Rivette diz que a estranheza da relação entre o casal central “já está em Balzac” e que o “objeto exato da disputa nunca é citado”. “O centro do filme é constituído por uma partida de xadrez cujas regras são desconhecidas para nós, assim como para os dois adversários… O que não os impede de trapacear.”
Daí a dificuldade para aceitar essa história de amor. No desespero da mulher enclausurada, convertida em freira para sofrer em silêncio e ter de Deus, em silêncio, tudo o que pode pedir (não podia ao militar de carne e osso), dá-se o encerramento de uma guerra sentimental. A derrota, para ela, consiste em assumir outro papel, longe da alta sociedade.
(Ne touchez pas la hache, Jacques Rivette, 2007)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
A Religiosa, de Jacques Rivette