A Religiosa, de Jacques Rivette

Prendemo-nos, primeiro, às imperfeições. Logo no quadro de abertura, uma mulher olha diretamente para a câmera. Tem um leque em mão. Ao seu lado, outro cobre parcialmente sua face, depois a descobre. Ela olha, e por tempo significativo, à lente de Jacques Rivette, que poderia ter escolhido outro ponto (corte) para dar início à sua obra.

O diretor francês escolheu começar pela imperfeição; mais ainda, escolheu nos dar a exata dimensão de que trata seu filme: do olhar dessa mulher desconhecida, que nunca mais veremos no filme, ao movimento de câmera que se segue, temos o pior dos teatros, o teatro dado, explícito, o fingimento barato que deságua na religião.

Rivette apresenta-nos um palco separado do público. Entre os lados, uma grade. Grades, muros, muralhas, cortinas – uma constante em A Religiosa, de 1966, baseado na obra de Denis Diderot. O teatro do absurdo que, forjado ao ritual, à pretensa realidade, será desmascarado pela atriz conduzida ao papel repelido, o de freira.

Outras imperfeições – no nível da montagem, conscientes como o primeiro corte – seguir-se-ão ao longo dessa experiência única, estranho filme parcialmente calado, parcialmente gritante, desse jogo de recusa à teatralidade da vida – leia-se: a teatralidade em seu pior estado, que oprime, que convém chamar de falsidade ou hipocrisia.

Chamo de teatralidade o que dá o tom desse filme de revolta: o teatro da Igreja, ao encontro de suas posses, de sua necessidade de pôr em Deus as atitudes terrenas de seus sequazes, orientados ao pior, seres que não amam e fingem amar, figuras repetidas – em atos, figurinos, rituais, orações – e aprisionadas aos castelos que criaram a si mesmas.

Na montagem, Rivette tira-nos do “controle”, ou da continuidade. Suas elipses e falsos raccords são conscientes. O realizador – nome importante do núcleo duro da nouvelle vague, os chamados “jovens turcos” – confronta a aparente linearidade que se espera do espaço da quietude e do reino da interiorização. A montagem feita a saltos desajeitados condiz com os choques de sua heroína silenciada com madres e outras freiras.

É a história de Suzanne (Anna Karina), que não crê e continua, até o fim, crendo não ter a vocação para a vida de freira. Para o claustro. Quer ser livre, ser a mulher que é, a despeito de dotes e casamentos, da sociedade do lado de fora. Para dentro dos muros do convento, ela insiste em olhar aos outros, ao redor, enquanto pedem que olhe para dentro – para Deus.

Talvez seja essa a grande diferença – no reino da retidão religiosa ou no do pecado – para alguém como Suzanne. Há sempre de se olhar para fora, para os outros, e isso significa viver a realidade. É ver a sociedade como ela é, o teatro montado para que todos – pais, mães, irmãs, padres, freiras, monarcas – creem em outra vida no interior do convento.

Ser freira, aqui, é abrir mão de tudo, é ver para dentro. Suzanne não está disposta. Em sua jornada, passará por duas instituições religiosas. Seu destino é dado por sua família, que não sabe o que fazer com ela. Comprar um casamento é caro demais, mantê-la solteira também. A mulher é feita objeto nesse Estado que permite que os conventos sejam currais. Na falta de uma “carreira” será dada ao casamento final: é de Deus, e de ninguém.

No primeiro convento, ela será vítima. Não quer estar ali. Pequenos atos serão considerados pecados mortais, como ocultar papéis e dizer o óbvio. Logo será considerada portadora de Satã. Terá as roupas rasgadas, comerá com cães, debater-se-á entre corredores os quais Rivette tornará o exemplo maior do castigo, do movimento que nunca termina em fuga. Apenas se debate, de um lado para outro, como se arrastada pelas estruturas.

No segundo, será a desejada. O jogo inverte-se. Suzanne passa à protegida – à amada, claro – da nova madre superiora, que por ela sofre. Agora é a madre que se debate entre os corredores, que se eleva como espírito sem rumo, que quer dizer a Suzanne – por tantas vezes – o que é sentir desejo nessa situação de puro impedimento.

Nos dois casos surgirão impasses. Primeiro Suzanne pede que os outros vejam o que ela vê: pede que se olhe para fora, o que se revela impossível. Depois, pede que não a vejam como ela é em sua forma física: para a madre sedenta pelo seu corpo, pelo seu toque, ou mesmo por sua entrega total – o que inclui o espírito -, ela será a luxúria.

“Nunca teve a tentação de olhar para si mesma com prazer e ver o quanto é bonita?”, questiona a madre, interpretada por Liselotte Pulver. “Não se é bonita para si mesma, mas para os outros”, argumenta Suzanne, como se adiantasse seu destino final: será ela, livre dos muros, apenas bela para os outros, objeto a ser visto, resumido pela casca.

Quem a ajuda a saltar o muro é um padre, interpretado por Francisco Rabal, que já havia interpretado um padre no marcante Nazarin. Com Buñuel, ele fez o religioso enxotado, condenado, sem lugar no mundo; em A Religiosa, é quem não resiste – como a madre – à beleza da moça de corpo coberto, à exceção da face de grandes olhos.

O convite é, para a moça, a oportunidade de escapar. Para além dos muros, novos problemas: a moça vaga por cidades, fugida, em pequenos trabalhos e mendicância. Termina como prostituta: serve ao último papel que ainda pode servir, já que os de esposa e religiosa foram descartados. Rivette, sempre econômico, com elipses certeiras, resume tudo: a hostilidade do mundo resulta na inaceitação do próprio ser. Suzanne encontra Nazario.

Censurado na França de 1966, A Religiosa serviu às autoridades – aos religiosos, aos dirigentes da Cultura, aos políticos de carreira – a carapuça perfeita. A paixão da vida regada à sala escura, a dos jovens amantes do cinema e regentes da nouvelle vague, cruzava a linha final. A demissão de Henri Langlois e o Maio de 68 eram os passos seguintes para o sepultamento da inocência das “velhas” imagens de Karina, Belmondo, Léaud e Brialy.

O destino de Suzanne serviu de representação a um novo tempo para Rivette, Godard e Truffaut: era necessário romper muros, olhar para fora e escapar ao aprisionamento, aos papéis dados, ao teatro cindido pela grade que separa duas vidas. “Prenderam Suzanne”, o slogan, era, na verdade, o espírito da época – entre um fim e um novo começo.

(La religieuse, Jacques Rivette, 1966)

Nota: ★★★★★

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Veja também:
Simone Simonin freira proibida, por José Lino Grünewald

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