Diderot voltou à baila no século XX. Diderot, nascido em 1713 e falecido em 1784, o homem que dirigiu a Enciclopédia, escritor de sete instrumentos (conto, novela, filosofia, crítica de arte, teatro, ensaio), tem a sua Religieuse, publicada em 1760, renascendo mais de dois séculos depois para agitar os governantes biem-pensants. E fala-se em moral fin de siecle. Pois neste século – da cibernética, da astronáutica, dos psicotrópicos, dos Beatles, enfim, do cinema – não é apenas uma seita marginal de provincianos, como aquela que investiu contra O Padre e a Moça, em Minas, mas até o Estado quem silencia Diderot, o diretor Jacques Rivette e a atriz Anna Karina.

La Religieuse não parece ser um filme de qualidades excepcionais. Mas a censura e o próprio Governo francês encarregaram-se de lhe conferir uma fama excepcional, extracinematográfica. A notícia, por ocasião da abertura do Festival de Cannes, estourou como uma bomba: o secretário de Estado de Informação, Yvon Bourges, apesar de dois pareceres favoráveis de uma Comissão de Controle (que controla a produção e exibição de filmes na França), proibira Simone Simonin, a freira, de ser exportada ou mesmo distribuída na França. Depois, permitiu apenas a exportação para países não-católicos (sic). Alegando que recebera 500 mil cartas de protesto contra uma fita ainda nem sequer lançada em exibição para o público em geral (fato que estarreceu a Imprensa e permitia as justas indagações de que faria, logo um ministro de Informação, perdendo o seu precioso tempo de informação, lendo 500 mil missivas), o sr. Yvon Bourges apresentou o seu comunicado: “Esta decisão é motivada pelo fato de que, em razão do comportamento de alguns personagens, como de certas situações, o filme é capaz de ferir gravemente os sentimentos e consciências de uma parte muito grande da população”. E aduzia que tais considerações eram igualmente válidas no tocante ao exterior, especialmente em determinados países estrangeiros onde susceptibilidades poderiam também ser feridas.
Com isso, segundo a redação da revista especializada Cinéma 66, “os espectadores franceses receberam um atestado do Governo de que não atingiram a maioridade intelectual”. Aliás, também com isso, o Governo francês conseguiu o milagre de unir em torno de uma luta os grupos de críticos e cineastas mais heterogêneos, radicais e antagônicos entre si, como é o caso das revistas Cahiers du Cinéma e Positif. E Albert Decamps, secretário geral da Federação Francesa dos Cine-Clubes, após acusar vigorosamente a violência contra A Freira e o cinema, interpreta Diderot: “o tema do romance é dos mais nobres possíveis e pode ser assim resumido: a liberdade é um valor sagrado”. “Não há vocação imposta à força e a vida religiosa, quando não é fruto de um engajamento sincero e espontâneo, pode levar às maiores desgraças e à depravação, a sociedade do século XVIII que tolerava essas práticas trazia em si o princípio de sua própria condenação.”
A história extracinematográfica do filme, A Freira, que, posteriormente, graças a uma concessão dos seus autores aos requintes dos censores, passou a envergar o título ridículo de Simone Simonin, A Freira de Diderot, teve início em 1962, quando a Comissão de Pré-Censura, ao opinar sobre o roteiro da obra, informou o produtor Georges de Beauregard (o mesmo produtor de A Bout de Souffle, Lola, Léon Morin, Prêtre, os dois primeiros já exibidos no Brasil) que a fita estava arriscada de ser integralmente proibida. No ano seguinte, apresentaram uma nova versão do roteiro, que também foi vetada. Finalmente, em 1965, surgiu uma terceira versão, aceita enfim com reservas e sob a perspectiva natural de ser a obra considerada imprópria para menores de 18 anos. Em setembro de 1965, Georges Beauregard aceita o risco e as filmagens começam. Na mesma época, as indefectíveis associações religiosas encontram o que fazer e começam também a torpedear o filme. Superioras e outras madres inferiores confessam ao ministro da Informação na época, M. Peyrefitte, o seu estado emocional negativo com a perspectiva do filme dirigido por Rivette. E assim algumas autoridades continuavam a se “interessar” pelos protestos e a campanha terrorista seguia o seu curso. Enfim, chegou-se ao momento mais agudo da farsa. Neste ano, a Comissão de Censura assiste ao filme e aprova a sua exibição, proibindo-o apenas aos menores de 18 anos. O secretário de Estado, aturdido e inconformado, obriga a Comissão a rever A Freira. A Comissão mantém o seu ponto de vista. Então, em 2 de abril de 1966, o mesmo secretário de Estado proíbe a fita, sob as manifestações de repulsa e indignação de intelectuais, artistas, jornalistas, estudantes e diversas organizações de cinema ou de cultura. Resultado do escândalo: A Freira, de Diderot, torna-se best-seller absoluto nas livrarias, assim como, de hábito, acontecia com os livros que caíam no extinto Index da Igreja.
Entre os inúmeros e ilustres documentos de protesto contra a violência do Estado sobre Simone Simonin, destaca-se a carta do diretor Jean-Luc Godard (Alphaville, Acossado, Viver a Vida, Pierrot Le Fou) enviada a André Malraux, ministro da Cultura, da qual vamos transcrever o trecho final, abaixo.
“Se já não fosse prodigiosamente sinistro, seria prodigiosamente belo e emocionante ver um ministro da U.N.R. de 1966 ter medo de um espírito enciclopédico de 1789. E, agora, estou certo, caro Malraux, que você não compreende nada em definitivo desta carta, onde eu lhe falo pela última vez mergulhado em repulsa. Nada mais você compreenderá porque – doravante – terei medo também de lhe apertar a mão, mesmo em silêncio. Ó – não porque as mãos pareçam com aquelas sobre as quais nunca se apagará o sangue de Charonne e de Ben Barka. Absolutamente. Você tem as mãos puras como o kantismo. Contudo, ele não tem mais as mãos, como dizia Péguy. Cego então e sem mãos, apenas com os pés para fugir da realidade, em uma palavra, covarde, ou talvez somente fraco, velho e cansado, o que vem a dar no mesmo. Nada de extraordinário pelo fato de que você não mais reconheça a minha voz, quando lhe falo a respeito da reclusão, por assassinato, de Simone Simonin, a freira de Diderot. Não. Nada de extraordinário nessa covardia profunda. Você faz-se de avestruz com as suas memórias interiores. Como então poderia me entender, André Malraux, eu, que lhe telefono do exterior, de um País longínquo, da França livre.”
O affaire La Religieuse é, por enquanto, um caso encerrado*. Algum dia, no entanto, como sempre ocorre, o filme sairá das prateleiras da interdição e respirará nas telas. Só aí, então, ter-se-á a medida exata da intolerância – mesmo porque a censura, que consagra esta última, tem a sua medida de acordo com a índole dos regimes políticos. Pois, é preciso não confundir: a censura não é um mal necessário – é apenas um mal inevitável; e, pelo visto, incurável enquanto houver Estado, burrice e intolerância.
Correio da Manhã (24 de julho de 1966)
*A censura ao filme caiu em julho de 1967, quando foi permitido para maiores de 18 anos na França.
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