Na crucificação, Alex quer o papel do carrasco, não o de Cristo. É sintomático, até previsível. Quer a chibata em suas mãos. Por pior que sejam seus atos, esse jovem tresloucado da primeira parte de Laranja Mecânica é um homem livre. Sua diversão é vagar pela noite com seus colegas, em bando, atrás de ações que se resumem à violência.

A leitura da Bíblia, por Alex, chama a atenção do capelão do presídio. Cada um faz sua própria leitura do livro sagrado, de qualquer livro. A cena da crucificação – reproduzida por Stanley Kubrick como antigos filmes épicos – explica muito sobre esse garoto-homem, esse assassino sem remorso nem dor: ele quer o papel ativo, não o passivo; ele aceita sua condição de carrasco sem se compadecer com os inocentes que encontra pelo caminho.
O nome desse garoto-homem joga com as palavras: a lex (do latim, uma lei), como o próprio autor do livro, Anthony Burgess, havia explicado sobre sua criação. Primeiro ele é o senhor de seu universo, imposto sem a lex e, por isso, paradoxalmente, um universo com sua regra, a primeira e a última: um espaço que contrapõe a lei, contra qualquer lei.
A partir de Burgess, Kubrick questiona-nos sobre os resultados do livre-arbítrio. Voltamos outra vez à questão religiosa: quando Alex é apresentado a uma plateia de autoridades, no teatro que pretende expor sua cura, o capelão é a única voz a apontar à ausência do livre-arbítrio. Somado à ciência, o Estado castra a liberdade individual e a Igreja pede que o homem possa fazer escolhas – ainda que levem à chibata.
Mas há de se notar uma diferença central: na Roma contra Cristo o dono da chibata estava a serviço da lei. Cristo era o rebelde, o perseguido pelo sistema. Alex está à margem sem se importar; não pensa no resultado e, admirador de arte, tampouco pode ser acusado de ser movido apenas por instintos. Alex não é destituído de razão.
Face rósea, roupa branca, punhal e coturno, o protagonista bebe leite com sua gangue e espanca um mendigo que toma álcool. O rosto do garoto-homem explode logo no primeiro plano do filme, e se afasta, revelando um local peculiar em que esculturas de mulheres servem de mesa e máquinas para alimentar seus clientes – com leite.
O leite é o contraponto à bebida do mendigo, a suposta pureza ao vício, o close ao plano em detalhe (o rosto de Alex, depois a garrafa no chão), o jovem ao velho. A cena está pronta: Alex e seus drugs cercam e chutam o moribundo. É apenas o início de uma noite agitada: depois vêm uma briga de gangues, acidentes de trânsito e o estupro de uma mulher na frente de seu marido, um escritor, após os jovens invadirem sua casa.
Alex cultiva Beethoven e uma serpente em seu quarto. O animal desliza por um suporte fixo preso à parede, o falo que penetra a parte íntima da mulher de pernas abertas, pintada na superfície. Com a “Nona Sinfonia”, ele enxerga sua própria ideia de perfeição, a pureza da alma casada ao leite que nutre seu corpo e o prepara para mais doses de horrorshow – o que nos remete às ideias nazistas sobre a pureza da raça.
Esses jovens brancos não têm ideologia. Servirão, depois, de instrumento ao Estado – Alex como cobaia de um tratamento que retira impulsos violentos e sexuais, dois de seus drugs como policiais que reencontram o protagonista e o torturam. Ao criminoso é dada a cura ou a farda. Nos dois casos, viram política pública, slogan do “bem-estar social”.
Por algum motivo que escapa, a tentativa de cura e seus resultados horrorizam-nos tanto quanto os atos de Alex na primeira parte, a mais forte das três. Sem saber, ele é vítima das circunstâncias históricas. Já se disse que os nazistas tocavam Beethoven nos campos de concentração. Preso à camisa de força, pálpebras esticadas para cima e para baixo, ele é obrigado a assistir filmes em um cinema transformado em laboratório.
Ou seria o laboratório que adotou o ecrã? Outra vez, a arte cumpre um papel: ela revela a Alex seus próprios horrores. E a “Nona Sinfonia”, ao que parece, é trilha sonora do acaso às imagens que mostram Hitler marchando entre os seus. Para Alex, a heresia: como podem casar a magnitude de Beethoven à massa bovina e ao seu líder genocida?
Para se libertar do mal que a música causa-lhe, do que antes alimentava sua alma, Alex precisa pagar com a própria vida. Só não contava com sua sobrevivência, com – ironia das ironias – sua “cura”. Em seus pensamentos, voltamos à era vitoriana. O sexo está no centro da sociedade, que aplaude o ato, sua liberdade, seu prazer incessante.
O garoto-homem retorna ao seu universo de prazeres, à sua redenção à carne enquanto flutua com a música dos equipamentos de som colocados no quarto do hospital. Para suas satisfações próprias, ele aceita ser uma marionete do governo de turno.
Kubrick explora o que parecia ser um futuro prestes a se concretizar. Seu filme segue assustador e atual: as farras com violência ora ou outra são assunto de jornal e os políticos continuam a pregar um discurso intransigente contra a violência, em nome da paz, atrás de votos valiosos entre os chamados “cidadãos de bem”.
Não há liberdade possível em Laranja Mecânica. Se há, reserva-se à própria arte e ao pensamento, às vezes à violência e ao sexo. Nem piscar é permitido. Kubrick produz sequências inesquecíveis de puro realismo, como o momento em que Alex rasteja-se para buscar ajuda, após ser espancado. Seu filme é cru, gelado e direto como uma navalha. Seu protagonista – nunca esqueceremos as torções dos lábios de Malcolm McDowell, à espera das garfadas do ministro – adora portar a chibata, rumo ao próprio calvário.
(A Clockwork Orange, Stanley Kubrick, 1971)
Nota: ★★★★★⤴
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
Por que Laranja Mecânica?