Annette, de Leos Carax

Os musicais da era clássica exalam perfeição em cada encaixe. Cada gesto, cada girada de corpo ou sapateado, cada refrão tinham de ser perfeitos. É o espetáculo a favor do mundo dos sonhos, à revelia do caos do mundo real. Mais tarde, o musical moderno voltar-se-ia à estrutura oposta: o espetáculo passa a se nutrir do caos e recusa a perfeição.

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No caso de Annette, Leos Carax apanha um pouco desses dois tempos, entre sonhos e espaços brutos e distorcidos. Seu filme descortina o show de falsidades do mundo moderno. A música confere à sua realidade outra camada: a história de amor entre um comediante e uma cantora de ópera será dada, até o fim, por canções, mesmo nos menores diálogos.

Carax enxerga harmonia onde não há, vê diálogos possíveis entre figuras inanimadas, tenta conferir vida à boneca de madeira que é Annette, filha do casal central, produto desse casamento que alimenta a mídia de celebridades.

O cineasta prefere a coxia ao palco, como em sua investida anterior, Holy Motors, ainda seu melhor filme. A bordo de uma limusine, Denis Lavant vive diferentes vidas. A certa altura, surge a música. Ao fim, em uma garagem, os carros comunicam-se. As máquinas falam, o mundo todo, em seus recônditos inesperados, em seus galpões de armazenamento de matéria, dialoga. Tudo tem vida, tudo pode ser integrado ao espetáculo. É a forma de Carax: organizar as menores peças do universo, dar canto ao silêncio.

Nessas investidas há sempre o risco do exagero. Aos menos experimentados, Carax parecerá um narcisista. Está no início de Holy Motors, do despertar do sono ao cinema, do cinema ao sonho; está também na abertura de Annette, como o operador da grande mesa de som no interior do estúdio. É quem dá o volume, o tom, a calibragem de cada peça.

E essas peças, os artistas, escapam do estúdio. É o esperado. Com Carax, a arte quer não apenas o palco ou outra zona de conforto, com mesas de som e microfones dispostos; é preciso ultrapassar a linha do estúdio, da ilusão, é necessário entregar o que a arte é em sua essência: um gesto de emoção e não confinamento.

Pena que Annette seja um fracasso artístico. Carax confunde-nos em diferentes momentos e com frequência cansa. É descontrolado. Suas passagens quase sempre não se combinam e seus amantes não têm química em tela. As músicas de Ron e Russell Mael, também autores do roteiro, não empolgam. Torcemos pelo silêncio que não vem.

“Respirar não será tolerado durante o espetáculo”, diz o cineasta, em narração, durante os créditos de abertura. É o anúncio do turbilhão, do volume que não deverá baixar, das pessoas que cantam o tempo todo, do início do fim, para dar outra forma a uma história de amor que termina em tragédia e exploração do talento infantil.

De súbito, Carax lança-nos no centro de um oceano falso com seu casal (Adam Driver e Marion Cotillard) em crise. As luzes que projetam as águas, ao fundo, somadas ao barco-palco em movimento, dão um efeito quase felliniano à passagem. O filme revisita histórias verdadeiras que insistem em se repetir: famosos que morrem afogados em circunstâncias misteriosas e se metem em crimes em suas belas piscinas.

Annette ganha face carnal nos momentos derradeiros. A metamorfose da boneca de madeira em ser vivo é o último estágio de um espetáculo trágico que concede ao pai a imagem verdadeira da própria filha, não mais a marionete ou um produto de sua criação, do filtro imposto por Carax em devaneios que muito tentam dizer e pouco saciam.

(Idem, Leos Carax, 2021)

Nota: ★★☆☆☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Os Olhos da Cidade São Meus, de Bigas Luna

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