O Lobo do Mar, de Michael Curtiz

Nem Edward G. Robinson nem John Garfield – homens brutos, cinzentos, estranhamente reais – representam belezas comuns ao sistema de estúdios da Hollywood dos anos 1930 e 1940. Ninguém esquece o rosto de desespero do primeiro em Alma no Lodo, ou o olhar descontrolado do segundo, anos depois, em O Destino Bate à Sua Porta.

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Exalam miséria e, por isso, são perfeitos a O Lobo do Mar, do livro de Jack London, com roteiro de Robert Rossen e direção de Michael Curtiz. E possibilitam retornar a uma produção feita de figuras que praticam o mal como divertimento, típicas da década passada, pouco a pouco substituídas pelo homem trágico mas com consciência do cinema de guerra dos anos 1940. Ou, se preferirem, pelo anti-herói.

O astro à frente é Robinson, o capitão malvado, a quem reinar no inferno é mais importante que viver de joelhos no paraíso possível. Não esconde a velhice e se agarra a seu barco, o Fantasma, até o fim. A certa altura, perderá a visão, o que nos permite pensar na cegueira do poder, em alguém que manobra alguns maltrapilhos para cumprir seu projeto pessoal.

Em O Lobo do Mar as peças têm representações próprias: além do Lobo, capitão e carrasco, há seu possível substituto, o homem “comum” vivido por Garfield e que encontra no barco a possibilidade de fuga; uma fugitiva que tenta, em vão, esconder-se atrás da beleza: única mulher em cena, ela é interpretada por Ida Lupino; além do escritor na pele de Alexander Knox, de curvas que nos fazem lembrar de George Raft.

O navio é a súmula da humanidade e seus vícios, com seu rei perto de ser destronado, vítima da própria miopia, a se divertir com seus escravos; o rebelde que ousa sair do porão para enfrentar o líder perigoso; o intelectual que aceita interpretar esse mesmo líder – e cuja interpretação, dolorida, tornará o vilão alguém mais fraco.

A mulher é uma só, bela às aparências, logo desmascarada: os homens riem quando descobrem que Ruth Brewster (Lupino) é como eles, um pouco torta. Todos têm seus motivos – a começar pelo capitão – para embarcar no que parece ser uma viagem sem volta a bordo do navio que nasce das névoas e, em boa parte, a elas vê-se atracado.

A bela não será companheira do capitão, que dela zombará. Reconhece na moça – a despeito do sexo, e talvez por isso mesmo – um rato como outro qualquer, a quem o sangue do rebelde (Garfield) serve de salvação. Ela tampouco tentará assumir o posto da Eva destruidora e ambígua. Aprende a amar seu salvador, à espera, também, da fuga.

O Lobo tem algo do Ahab de Moby Dick e está atrás do barco do irmão (equivalente ao leviatã) que, a certa altura, aparece e desaparece rapidamente. Em algum momento esse capitão soa-nos um pouco humano, flexível, frágil. Robinson é um ator gigante, homem de mil faces que pode incorporar o bem e o mal em um único filme, O Homem que Nunca Pecou, ou o tilintar da consciência do derrotado – seu melhor amigo, o anti-herói – em Pacto de Sangue, só para ficar em dois exemplos.

Ao lado dele, em O Lobo do Mar, está o escritor que deverá interpretá-lo, compô-lo em letras. “Eu escrevo o que eu vejo”, diz ele ao líder da embarcação. Escritores, sabemos, são seres à parte, enxergam o que não devem e podem terminar testados. Basta pensar na inesquecível cena de Os Imperdoáveis em que Gene Hackman oferece sua arma ao outro pistoleiro aos olhos de um escritor covarde, postado ali para mitificar em livros ou jornais essas figuras curiosas e não raro chegadas à carnificina.

O escritor é o intelectual antes citado. Ao descobrir que está em mar aberto, longe o suficiente da costa para não ser ouvido, resta a ele permanecer no Fantasma e, em dado ponto, usar sua intelectualidade a seu favor: escrever o que enxerga no navio em que todos, ou quase, tornaram-se indiferentes à morte, o próprio inferno.

A visão dualista do capitão só pode levá-lo mesmo a desembocar na cegueira: seu irmão que nunca alcançamos talvez seja ele próprio, outro lado que perdeu, o Deus que traiu e, se aceitado, uma concessão ao paraíso possível. O capitão não quer habitá-lo. Cria um mundo banhado em névoas e sangue enquanto finge caçar o leviatã. 

(The Sea Wolf, Michael Curtiz, 1941)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Soberba, de Orson Welles

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