Alguém já argumentou, não sem certa razão, que é mais fácil retratar a morte de uma criança através de uma animação. Ao longo de Túmulo dos Vagalumes, somos preparados para esse momento e nem assim – nem perante um desenho animado – a experiência será menos dolorida. A dor que nos consome é enorme porque a morte é anunciada.
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Inconformados com tamanho horror, tentamos crer no impossível: a criança conseguirá sobreviver. Seu único consolo termina na presença do irmão. Ou nas luzes dos vagalumes, luzes vivas que se movimentam pelo ar, que dão claridade ao refúgio, ao buraco, à vida em um Japão que assiste ao seu fim e cava o próprio túmulo quando em guerra.
Os insetos não estão no título à toa. Eles seguem os pequenos irmãos sem pai e mãe, sem ajuda e sem comida em boa parte da obra de Isao Takahata, também autor do roteiro a partir do livro de Akiyuki Nosaka. Poucos dramas de guerra – com pessoas em carne e osso ou não – têm impacto semelhante. Seu acerto está na pulverização da dor, nunca na sua concentração, ou na escolha de uma cena ou sequência a servir de clímax.
Desde o início, ao encararmos a face e parte do tronco do jovem Seita, compreendemos que o pior – como as luzes dos vagalumes, como os túmulos de um vasto cemitério, como as vítimas de um país atacado pelo alto – está distribuído. A questão é social; o resultado recai sobre os menores, os mais silenciosos, aqueles que os adultos – ainda embebedados pela honra do imperador, transmitida às crianças – insistem em não ver.
Impera a ideia de que é preciso fazer algo, trabalhar, ajudar de alguma maneira todos que ingressaram nas filas da morte, fardados, para o abate pelo céu, a bordo de um kamikaze, ou pelo mar, nos navios que depois desaparecem. Um velho homem, a certa altura, conta para Seita que esses navios foram parar no fundo do mar, outro túmulo.
As crianças resistem o quanto podem. Primeiro perdem a mãe. Com o corpo todo enfaixado, ela é lançada a uma vala com um amontoado de corpos. Antes, enquanto agoniza no hospital, quando ainda consegue dormir, temos apenas seus olhos inchados e sua boca roxa. Seita decide não contar para a pequena irmã, Setsuko, o destino da mãe.
Com a tia que lhes cobra arroz pela estadia, descobrem o desprezo pela vida. A indiferença dos mais velhos, o individualismo no pior dos tempos. Na guerra, com o ar encharcado pelas cinzas dos incêndios, com o céu marrom de fumaça, os sobreviventes passam a pensar mais em si próprios, menos nos outros, estorvos que roubam para comer, que correm em caminho contrário para roubar casas enquanto chovem bombas.
A marginalidade é natural. Seita é espancado quando flagrado roubando uma plantação de beterrabas; ao encontrar pedaços de gelo na terra, retira suas raspas para dar à irmã algo limpo para beber. A guerra em questão, maior, diz respeito à fome, sobretudo aos invisíveis que pretendem achar seus próprios refúgios e, como os vagalumes, vivem pouco e terminam em um pequeno túmulo do qual poucos, ou ninguém, dão-se conta.
Sabemos da morte, vemos sua consumação. Somos vencidos quando nos deparamos com espíritos andantes, irmão e irmã, que revisam suas vidas após o fim, que se revestem por uma aura parte vermelha, parte amarela, em passagem para a natureza – como se agora fossem tingidos pelas luzes dos insetos que antes perseguiam, que antes apenas os rodeavam, parte de um livro desbotado mas capaz de manter intacto o espírito de dor.
O menino dos primeiros instantes é quase um entulho aos olhos dos outros. Quando morre, um varredor do serviço público apenas constata “mais um” entre os demais. Os corpos desfalecem, escorados como podem nos pilares robustos e parcialmente forrados por poucos azulejos ainda fixos, representação perfeita da nação que se quis grande e apodreceu.
Ouvimos de um passante, ainda no início, o comentário que resume a crueldade presente nessa grande animação sobre a infância: “Os americanos chegarão nos próximos dias. É vergonhoso ter esses mendigos aqui”. Menos que mendigos: esses mortos-vivos escorados nas velhas estruturas japonesas serão sujeira na sola do coturno americano.
(Hotaru no haka, Isao Takahata, 1988)
Nota: ★★★★★
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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