Cosmópolis, de David Cronenberg

Tempo não é mais dinheiro. Dinheiro é tempo. A mudança envolve questões narrativas. Uma das personagens que se encontram com Eric Packer (Robert Pattinson) lança essa e outras ideias que nos inquietarão ao longo de um filme perturbador: “O dinheiro perdeu sua qualidade narrativa, como a pintura já perdeu”. Não estranha, assim, que os créditos de Cosmópolis sejam preenchidos por pintura expressionista abstrata.

O dinheiro perdeu a forma. O dinheiro está em todos os lugares porque está em nenhum. A moeda converteu-se em fluxo virtual no interior de um computador. E, como a mesma visitante (Samantha Morton) afirma, o próprio computador não tem mais forma, não se deixa ver, dispensa tela ou teclado. A máquina dissolveu-se como espírito.

Esse fluxo – ou espírito – é produto do cibercapital. Cosmópolis, de David Cronenberg, é ambientado quase todo em uma limusine. Em seu interior, por algumas horas, seu dono e novo dono do mundo, jovem tripulante em trono cercado por estruturas metálicas, recebe diferentes pessoas nesse que parece ser um dia decisivo.

Ele quer cortar o cabelo. Para tanto, precisa atravessar a cidade no dia em que o presidente dos Estados Unidos encontra-se por ali. Terá de fazer esse percurso – ele não quer cortar o cabelo em qualquer cabeleireiro, mas no seu cabeleireiro – apesar das ruas em ebulição, apesar do lado de fora, dos protestos que apontam aos ratos, aos culpados.

Packer descobrirá que não está ileso – apesar de sua estrutura mecânica aparentemente impermeável aos humanos, à balbúrdia, ao caos que, curiosamente, tem seu lado narrativo e, outra vez na voz da personagem de Morton, escolhe uma “apropriação” para chamar a atenção ou passar um recado: o corpo em chamas, em protesto.

Do lado de fora da limusine, o mundo resiste em repetições e fluxos narrativos, combate o futuro representado pelo lado de dentro, por Packer, seu conforto e sua indiferença, por seu caos silencioso e coberto pelo aspecto esmaltado de seu casulo. Impossível ficar indiferente às tantas ideias casadas ao mal-estar cronenbergiano e seu homem-máquina. 

Eis uma: o capitalismo e seu fluxo de dinheiro imaginário criam o futuro; ao manifestante anticapitalista cabe combatê-lo. O capitalismo concede um futuro de riquezas palpável apenas a alguns poucos e relega a maioria à margem, obrigada a viver o presente.

Enquanto os manifestantes sacodem a limusine, a consultora Vija (Morton) constata que “a força do cibercapital” mandará as pessoas para a sarjeta e para a morte. “Qual a falha da racionalidade humana? Ela finge não ver o horror e a morte causados pelos seus esquemas. Isto é um protesto contra o futuro. Eles querem bloquear o futuro.” No interior do carro, o jovem bilionário e a pensadora refletem sobre seu próprio meio.

O protagonista, nesse dia decisivo, tocará a ausência de sentido no universo e sua assimetria inexplicável. E a assimetria de sua próstata. Submetido a exames médicos todos os dias, por vontade própria, Packer descobre que parte pequena de seu corpo não tem a forma “correta”, o que pode parecer uma anormalidade. Para alguém da era do design absoluto, que deseja comprar capelas de arte a qualquer preço, a descoberta marca um ponto de virada.

Cronenberg volta a nos questionar sobre as assimetrias e, em algum limite, sobre as monstruosidades da carne, sobre o caos contra os “esquemas” dados por essas poucas pessoas poderosas e protegidas em cápsulas e mundos à parte – suas limusines, seus computadores, seus seguranças armados, seus arranha-céus.

A ordem não sobrevive. O estado do mundo do lado de fora da limusine – os protestos, o corpo imolado, o trânsito de uma cidade que, na superfície, pouco se mexe – tem sua narrativa política, sua necessidade de desordem criadora, o anarquismo da massa que tenta ser compreendido pelo observador privilegiado, e protegido, em seu “túmulo”.

Mas Packer subitamente quer viver. Ou escapar. Seu movimento ao passado – ao cabeleireiro ao qual seu pai levava-o quando criança – não é atitude do acaso. Ele quer recuperar algo, e talvez não possa mais ser humano. O destino cronenbergiano por excelência, aqui nas barbas de Don DeLillo. O protagonista aceita a assimetria, aceita o caos.

Encontra, no fim da jornada, o oposto, Benno Levin (Paul Giamatti), um ex-funcionário que Packer ensinou a “ler” o dinheiro na tela de uma máquina e foi tragado àquele universo que tudo destrói. Benno é o filho ressentido do capitalismo, o rato que não deu certo e voltou à toca dos velhos ratos: um prédio abandonado, insalubre, no qual as salas estão forradas de antigos móveis onde ficavam guardados os arquivos palpáveis.

Nesse dia decisivo, Packer descobre que não há design perfeito, que não existem padrões perfeitos nos fluxos da moeda digital. Ele aposta contra o yuan e perde. Benno é quem o lembra de seu lugar nesse espaço de caos, no bueiro que agora ele passa a enxergar: Benno é seu reflexo. “Minha próstata é assimétrica”, diz Packer ao outro, logo depois de atirar na própria mão para ter uma emoção real. “A minha também.”

(Cosmopolis, David Cronenberg, 2012)

Nota: ★★★★★

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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Veja também:
“O cinema como exposição trágica do ponto de junção entre vida econômica e economia psíquica”

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