No apresentação que antecede os depoimentos de David Lynch em Grandes Diretores do Cinema, o autor Laurent Tirard explica seu fascínio pelo cineasta americano: “a maneira como ele consegue mostrar o que se oculta sob a superfície das coisas, como os insetos na grama no início de Veludo Azul ou o corredor escuro de A Estrada Perdida”.
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Dá para tirar do depoimento o essencial sobre Lynch: o cinema “sob a superfície das coisas”, do sonho, do que habita a parte mais profunda de nós. E ajuda a compreender por que Duna é justamente seu maior fracasso e um dos piores filmes já feitos por um grande diretor: na empreitada a partir do livro de Frank Herbert, tudo está na superfície.
É difícil definir o que vemos. Mais parece uma mistura de Guerra nas Estrelas com Satyricon de Fellini. Estão ali as linhas da aventura e o movimento do primeiro, o aspecto grotesco e libidinoso do segundo. Nem o que soa radical sobrevive à experiência ou se aproxima do que esperamos de Lynch: o grotesco é suavizado pela atmosfera infantil, pela aproximação à onda Guerra nas Estrelas, que ajudou a ceifar a Nova Hollywood.
Lynch, no contexto histórico, está mais próximo à geração seguinte, à do pós-Vietnã. É um realizador com total consciência da importância da autoria e, no cinema, do direito ao corte final. Lynch deixou-se seduzir pelo som da flauta do produtor Dino De Laurentiis, assistiu às belezas da vida do mecenas em viagem à Itália e, logo “adotado”, fez o filme que o dono do dinheiro desejava. Recebeu e cumpriu, nestes termos.
O fracasso de Duna – refletido em quase todos os seus quadros, seja na versão de duas horas e 17 minutos, seja na de quase três horas – é compreensível quando se entende as diferenças entre cineasta e produtor. “Fiz Duna em parte porque é sobre a busca da iluminação”, diz Lynch em Espaço para Sonhar, escrito em parceria com Kristine McKenna. “Dino não entendia abstrações, poemas, nada disso – ele queria ação.” Injusto, contudo, culpar apenas o empresário boa praça por trás de King Kong e Flash Gordon. O mais razoável a dizer é que o pai financeiro do monstrengo sobrepôs-se ao pai artístico.
No fim das contas, esse filme feito para os anos Reagan, para plateias sedentas por naves e heróis interestelares, precisava viver na mais pobre das superfícies. Não que não tivesse, na essência, o DNA de Lynch. O problema estava, claro, nas estruturas, no barro usado para criar a peça e, sabemos bem, na forma final que a estátua muda assumiu.
De cabelos avolumados, destreza com punhais, Kyle MacLachlan é o herói da história. Escolhido, ele sequer deveria ter nascido, diz a lenda: sua mãe, uma concubina, foi dada a um rei para gerar filhas mulheres. A inversão do sexo possibilitou a vitória de um grupo de rebeldes (sempre eles) contra as forças de um império assassino (de novo).
O herói precisa descobrir seu caminho, sua jornada. Tudo é jogado, confuso, truncado. Não há sequer apreço pela lógica da decupagem, pelo respeito à mínima organização que se espera do bom cineasta, e pelo respiro necessário para compreender as personagens em cena – para, ao menos, termos um resquício de emoção, de vida, de espírito.
Em Duna, Lynch teve de lidar com vermes gigantes, um gorducho (Kenneth McMillan) que flutua como um balão de hélio e respinga pus pela face, uma estrela da música (Sting) a servir de objeto sexual magricela e com tanga de borracha, uma diva italiana (Silvana Mangano) com o crânio parcialmente plastificado e um monstro preso a um aquário, oráculo que serve de espermatozoide para a expansão do universo.
E teve de lidar, sobretudo, com a grandeza – ou sua ideia. Forçar o nascimento de um épico, com Lynch, só poderia resultar no que resultou: um pastiche que empresta um pouco de tudo e nada consegue parir em ridículo espetáculo de dispêndio de recursos. Não há grandeza alguma. Ao contrário, reparamos mais nas sobrancelhas postiças e gigantes postas em Brad Dourif e Freddie Jones do que nas batalhas entre homens.
O diretor rendeu-se às regras da indústria. Aceitou, pela primeira e única vez, estar na superfície. Pagou o preço da própria anulação (momentânea) enquanto artista – o que explica o trauma que o filme da família De Laurentiis causou, anos a fio, em alguém chegado à meditação transcendental e cujos filmes brotam do buraco dos insetos e da natureza humana.
(Dune, David Lynch, 1984)
Nota: ☆☆☆☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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Apesar das falhas desta versão cinematográfica incomodamente resumida da obra literária de Frank Herbert, eu gostei da versão do David Lynch. Mas também lamento o cancelamento da versão de Alejandro Jodorowsky de 1974. Essa obra nunca levada a frente prometia ser no mínimo interessante.