Não estranha que as sequências mais lembradas sejam as mais fortes: o momento em que o scanner infiltrado explode a cabeça de outro homem, no auditório da empresa, e o duelo de irmãos, ao fim, com a autodestruição dos corpos. Há outras, igualmente interessantes, capazes de resumir Scanners: Sua Mente Pode Destruir, de David Cronenberg.
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Em uma delas, o protagonista Cameron Vale (Stephen Lack) termina no interior de um grande crânio construído por um artista plástico. O autor da peça é também um scanner, ou seja, um ser dotado de poder para invadir mentes alheias e até controlá-las. O crânio representa a falsa ideia de conforto; abriga poltronas e almofadas, serve de sala para homens – não tão diferentes, tampouco iguais – que tentam o diálogo.
O rompimento logo se impõe. Outros scanners chegam ao local, armados e controlados a distância pelo vilão Darryl Revok (Michael Ironside). O objetivo é matar o protagonista e o artista que o acolhe em sua própria arte: a comprovação de que a mente não guarda sossego e, como as cabeças que lhe dão guarda, será atacada pelos lacaios.
Cronenberg dá movimento e ação a um filme sobre o mundo feito à ciência e em certa medida indiferente aos laços de sangue. Como se viu em alguns filmes do realizador, como Gêmeos – Mórbida Semelhança, em menor ou maior grau a ciência sempre produz monstros e, de maneira incessante, retornamos ao mito de Frankenstein e a seus reflexos na arte. Em Gêmeos, os instrumentos cirúrgicos; em Scanners, o crânio e as peças do artista.
E outra vez, perto do fim, descobriremos que existem dois irmãos nessa história, dois lados da mesma moeda, produtos do mesmo homem (um cientista) e de um mesmo veneno. E que esses irmãos serão destinados ao confronto, na famosa sequência final. Veias estufadas, pele queimando, sangue a jorrar pelos braços e pela cabeça e até troca de corpos.
Diferentes, eles são colocados à margem. Cameron é um mendigo nos primeiros instantes de Scanners, quando perambula por um shopping atrás de comida. Ciente de seu poder, seu pai e criador (Patrick McGoohan) permitiu que o rapaz ficasse pela rua, para não ser ninguém – e não compreender suas forças interiores. Quando seu irmão Darryl rebela-se e monta seu próprio exército para dominar o mundo, o pai volta a procurá-lo.
Prende o filho em uma cama no primeiro encontro e o expõe à presença de outras várias pessoas, desconhecidos, apenas para que o protagonista seja atacado por pensamentos alheios. A sequência é assustadora: Cameron debate-se enquanto os convidados prestam-se apenas a ficar no local, a observá-lo, como em um teatro de horrores ou uma plateia de execução. Segundo Cronenberg, nada é pior do que estar na mente dos outros.
O conflito, nesse caso, deve-se à convulsão gerada pelo embate dos inúmeros fluxos de pensamento, antes organizados e separados para permitir o que chamamos de sociedade (cada um com seu mundo de segredos, com sua intimidade). Como inúmeras correntes de energia ou dados de computador, antes separados e depois em curto-circuito.
O herói não se limita a invasor de mentes e, a certa altura, penetra o interior de um supercomputador através da linha telefônica. Vemos suas entranhas. Tem-se a batalha entre dois cérebros, dois circuitos. De um lado o homem que não quer ser autômato, de outro a máquina que, em futuro não tão distante, pode ganhar vida própria.
Fundido à maquinaria há sempre o orgânico. Desse composto – dessa confusão – é feito o cinema de Cronenberg. O homem é carne em um mundo em que avançam a ciência e, por extensão, suas criações. Daí a dificuldade de escapar ao desequilíbrio psíquico. Antes de serem um só, Cameron e Darryl descobrem o resultado desse desequilíbrio.
Perante tais transtornos, compreendemos o artista scanner (Robert A. Silverman) que prefere a reclusão, que não vai às suas exposições, e que imprime na arte os humanos deformados que poucos conseguem enxergar. São, na verdade, reproduções de seus interiores.
(Scanners, David Cronenberg, 1981)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
