Os jornalistas estão atentos a todo e qualquer movimento, às reações dos poderosos, em diferentes momentos de Homem Mau Dorme Bem. O foco é uma grande empresa, seus líderes e suas relações de corrupção com o poder público. Mesmo em ambiente tão belo, como na sequência do casamento, algo cheira mal. A imprensa fareja.
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De fora, pequenos, talvez menores que coadjuvantes, os jornalistas são importantes ao desenrolar inicial da narrativa: são eles que nos ajudam a entender quem é quem nesse jogo de várias peças, nessa festa que projeta beleza e tradição. Comentam cada momento, cada chegada e saída, como se conhecessem bem um filme ainda sem término.
Primeiro há o sistema diluído em pessoas, depois as pessoas que desabam e revelam fraqueza, da menor à maior. O cineasta Akira Kurosawa, em roteiro escrito a várias mãos, demora – mas nunca nos faz cansar – para atingir essa fragilidade oculta nos grandes prédios, nas corporações robustas sob a impressão de ordem e de que tudo vai bem.
Há mais que um filme de máfia, seu seio e suas traições – também suas tradições. Mesmo o pior dos homens, na visão do diretor, é alguém verdadeiro, parte de um tabuleiro, velhos ou jovens presos a seus ternos, aos dias de trabalho, desmitificados. Vai a homens corrompidos em seus escritórios; alguns ainda podem sentir dor, amar alguém.
O protagonista é o noivo, Nishi (Toshirô Mifune), que acabou de se casar com a filha do poderoso dono da empresa. A festa da abertura, para tudo se entender, celebra a união entre diferentes, do rapaz que veio de baixo com a moça coxa, filha do chefe, menina sem voz que consegue amar o homem ao lado – apesar de sua indiferença.
Os bons modos à mesa reproduzem o que os jornalistas – a plateia – deveriam ver: toda a beleza do Japão em seus velhos rituais. Alguns membros dessa elite fraquejam em seus discursos, revelam-se culpados quando percebem um estranho sinal colocado no bolo de casamento, réplica do prédio da empresa a serviço da fome dos convivas.
Nishi finge obediência. Finge suportar esse espaço de pais mandões, filhos boçais, ratos servis e uma esposa comportada para esperá-lo no fim da jornada – e assim fingir, de novo, que o casamento de ambos, tão recente, vai bem. Nishi é um fantasma sob figurino engomado, cabelo ao gel, aparência necessária ao mundo corporativo.
Sua participação nas revelações do passado da empresa é justificada. Ele quer vingança. Não é quem diz ser, ainda que seja obrigado a vestir uma máscara em vida e morte para confrontar uma máquina de assassinatos e suicídios induzidos. Até a festa de casamento não escapa ao clima macabro que domina o todo: o som das champanhes simula tiros.
Há ecos do melodrama americano no grande filme de Kurosawa. Difícil encarar o irmão problemático (Tatsuya Mihashi), chegado à bebida e alheio aos negócios da família, e não pensar no Robert Stack de Palavras ao Vento, impotente levado à emoção, playboy que pretende resolver tudo aos gritos. Dá para entender por que o pai não lhe dá bola.
Da borda ao centro, Nishi tem sua migração dramática: em determinado momento ele demonstra algum coração, ainda é capaz de amar sua mulher. Tem passado. É o filho bastardo que lutou na guerra, que voltou com pouco ou nada, que rastejou por buracos e escombros – os mesmos que, ao fim, contrapõem o belo e grande salão da abertura. Fechados, escuros, aos cacos, nos quais os filhos do dono da empresa descobrem os crimes do pai.
O diretor de Os Sete Samurais realiza um filme político e urbano. A ausência de saídas tornou a obra indigerível a certas plateias; sua realidade e secura fazem retornar a Rashomon e O Idiota, mas com uma diferença significativa: a maldade não se limita ao ponto de vista ou a determinada personagem; enraizou-se por completo no tecido social.
(Warui yatsu hodo yoku nemuru, Akira Kurosawa, 1960)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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