As cores e músicas do verão, em clima de descoberta e liberdade, não combinam, à primeira vista, com o interesse do protagonista pela morte. É uma fixação. Morte “com M maiúsculo”, ele pontua ainda no início de Verão de 85, antes de nos encarar e dizer que aquela história – sua história, também a de um período, de uma estação, de um livro – é a de um cadáver.
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O diretor François Ozon, a partir de Dance on My Grave, de Aidan Chambers, dribla a história de amor esperada. Não é apenas sobre um adolescente que sofre com a morte do amante, mas, sobretudo, sua busca – nem sempre consciente – para eternizar o cadáver do outro. A morte do companheiro é revelada ainda cedo.
Escrever será um ritual semelhante à mumificação: maneira de conservar o cadáver e lidar com a morte, ao mesmo tempo em que o escritor tenta compreender qual é a versão de sua vida naquele momento. Há de ser algo passageiro, uma estação, ou não se resiste ao capítulo, ou à viagem de barco – possíveis representações dessa passagem.
O interesse de Alexis (Félix Lefebvre) pela morte é de outra natureza, e ele mesmo não sabe como explicá-lo. Ao professor de literatura (Melvil Poupaud), conta que desde pequeno se viu atraído pelos ritos egípcios e pelas formas como as antigas sociedades lidavam com a morte. O que o menino parece ignorar é que se trata, sobretudo, de conservação.
Eternizar um cadáver e viver intensamente são situações opostas, e confundem o então desnorteado Alexis. Seu amante, por isso, precisa ser alguém que esbanje liberdade, leveza, que pouco se explica e se mova muito: um amor de verão, forte mas passageiro.
Surge em tela David (Benjamin Voisin), cujo despojamento não o faz ligado a ninguém – nem ao mais novo companheiro, nem à mãe e muito menos ao pai morto. David vive para ser breve, um choque, um acontecimento para o escritor que precisa de sua representação, de seu apaixonante rebelde, igualmente de explicações àquele momento.
Ozon mostra-nos que escrever é vencer a morte, é, como o próprio cinema, conservação. Enquanto sua matéria é a visual – na fotografia nostálgica com efeito granulado, como uma velha foto um pouco embassada, de autoria de Hichame Alaouie -, do espírito do protagonista jorram letras tortas, delicadeza e rispidez, declarações voltadas a nós, cúmplices perfeitos dessa experiência: somos espectadores-leitores.
O filme todo é a narração desse livro e termina – tem de terminar assim – com a sobrevivência do escritor, com o fechamento do livro, ou com o início do próximo. É quando chega outra estação, quando as personagens vestem roupas para o inverno, quando se remete o pequeno barco para outra direção. Nesse encerramento, Alexis afirma que contou sua história para que soubéssemos quem ele é. “Mas talvez não seja mais quem eu sou. Porque a única coisa que conta é conseguir, de uma forma ou de outra, escapar de sua história.”
Em suas andanças, o protagonista conhece a inglesa Kate (Philippine Velge). Após flertar com ele e com David, ela torna-se amiga e confidente. É quem nos ajuda a compreender a história de amor dos dois rapazes: segundo ela, Alexis ama “uma ideia” que faz de David, não o que ele é de verdade. Nesse sentido, o outro é uma criação.
A observação, ao mesmo tempo que ilumina a jornada do jovem escritor apaixonado, traz novas implicações. Por se tratar da narração de uma história passada, dos dias nos quais nasce um livro, podemos supor que David nunca tenha existido. O amante é o “amigo dos sonhos”, como afirma Kate, aquele que carrega tudo o que o outro espera de alguém que busca viver sem freios – por isso mesmo trágico.
A vida em excesso toca a morte. Alexis compreende seu lugar nessa estação, a necessidade de vestir personagens a cada passagem sem perder sua autenticidade. O escritor e velejador do encerramento parece ter atingido a vida adulta. O amor de verão – a forma dessa história colocada em livro – é seu exorcismo, sua sobrevivência.
(Été 85, François Ozon, 2020)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
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Um comentário sobre “Verão de 85, de François Ozon”