Eles Vivem, de John Carpenter

O musculoso Roddy Piper serve propositalmente ao ridículo. Sem-teto de cidade em cidade nos Estados Unidos neoliberais de Ronald Reagan, ele descobre que o mundo ao redor é uma farsa, que alienígenas passam-se por seres humanos e compõem o chamado establishment. Homens como ele – cegos, pobres, andarilhos – são empurrados à margem.

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A revelação é dada pelo uso de óculos especiais. Com eles, passa a ver o mundo como é de verdade. Os óculos são fabricados por membros da resistência nos fundos de uma igreja de fachada. Em Eles Vivem, a religião não é a da velha alienação, mas a que se assume esconderijo para algo maior: o levante contra o vilão que lançou seu novo deus: o dinheiro.

Está estampado na nota, por sinal. O dinheiro – como a publicidade, as capas de revista, todas as formas de informação – foi dominado. À igreja resta ser o que sempre foi: templo posto ao lado dos desamparados, com padres cegos em terra de cegueira geral. Na igreja, o cego é autêntico, verdadeiro, ainda assim capaz de enxergar.

O mal é óbvio, e a religião sempre esteve entre obviedades, a apontar inimigos, fazer a conversão de alguns à luta que agora transcende o espírito. Essa sátira dos anos Reagan, por John Carpenter, traz a crítica social embalada como brincadeira, passatempo com cara de filme B. Seu herói canastrão atesta o reino das imperfeições evidentes.

Piper tem falas idiotas. Ao colocar os óculos especiais e ver alienígenas, diz o que sempre quis dizer a uma senhora coberta por peles e joias, dondoca conservada à naftalina. A criança sai do casulo, encontra a aventura, descortina os problemas de uma sociedade que não se deixa esconder. Basta ver, diz o engenhoso Carpenter.

O diretor nunca escondeu sua inclinação à falsidade. Espírito de alguém que cresceu de joelhos dobrados aos clássicos, que fez de Assalto à 13ª DP sua versão de Onde Começa o Inferno – no qual os mocinhos encurralados encontram a maneira de abater os invasores sem rosto, os outros contra os seres humanos, policiais ou bandidos.

Carpenter retorna sobretudo ao cinema de paranoia dos anos 1950, agora com necessária inversão: os alienígenas não estão mais entre a gente simples da pequena cidade, no interior americano, mas entre os devotos no altar do livre mercado e do dinheiro, aqueles que se confundem com o clichê que costumamos atribuir à América vencedora: homens brancos, ricos, engravatados, yuppies promovidos pelo cassino global.

Os óculos são parte da brincadeira. Era necessário apenas uma mágica qualquer – no reino da ficção científica – para que a personagem central conseguisse enxergar. Ao descobrir que muitos não são como ele, o brucutu sai atirando para matar. O filme investe em saídas impossíveis, situações engraçadas, repetições que culminam na briga interminável entre o protagonista e seu novo amigo e colega de trabalho, vivido por Keith David.

Essa exaustiva e tão longa troca de golpes questiona-nos sobre as intenções de Carpenter. Seria a briga, em reino de tamanha alienação, a verdadeira vitória dos invasores mascarados? O conflito entre marginais, em seus limites, fala-nos outra vez da cegueira. O diretor faz um filme de esquerda, brincadeira fantástica para plateias adultas.

Remói o próprio sentido do cinema: as mensagens que precisamos ver e sempre ignoramos a favor do conforto. Revela os signos dispostos sob a beleza fácil que vai da publicidade à televisão, da banca de jornal ao papel-moeda, de Wall Street ao supermercado que abastece os endinheirados alienígenas. Antes em cores, passamos ao preto e branco.

A grande antena que alimenta a televisão é a mesma que impede que os invasores sejam vistos. Destruir a nascente da mídia de massa é, por fim, permitir que os parasitas do mercado sejam desmascarados. Os vencedores expõem faces cadavéricas, extremo em que o grotesco toca a brincadeira, em que o horror alcança a comédia.

(They Live, John Carpenter, 1988)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
O Espírito da Colmeia, de Víctor Erice

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