Até o mais servil dos homens é um homem político, diz Bernardo Bertolucci. O fracote Marcello Clerici (Jean-Louis Trintignant) alimenta-se do espírito do momento, da bandeira em voga, de frases e conclamações também: orgulha-se de ser um facista enquanto isso lhe rende frutos, para depois, conveniente, astuto, mudar de lado.

Em dois momentos de O Conformista, ele dá sinais de que não é o alienado que parece: ao lembrar seu antigo professor das aulas sobre o Mito da Caverna de Platão e, ao fim, na frase que revela um quase espectador passivo de sua época: “Quero ver como é a queda de uma ditadura”. Reconhece, frio, o mal ao qual havia se inclinado.
Sob o fascismo, a personagem em questão pode ser uma assassina de aluguel ao mesmo tempo em que busca, a todo custo, sua normalidade. É a tragédia dessa história: a crença de que a aliança com um sistema autoritário, pelo poder conferido, pode ocultar – à medida que dá comodismo – contradições humanas e confrontos internos.
O Clerici de Trintignant está repleto deles: viveu a tensão sexual com outro homem, na infância, ao ser abusado; teve de matar esse mesmo homem, seu chofer de cabelos longos e ocultos sob o quepe, um pouco mulher, o suficiente andrógeno na figura esguia e robótica de Pierre Clémenti. Acreditava, até a noite em que Mussolini é retirado do poder, ter matado esse fantasma; nas fraturas do sistema, nos corredores da velha Itália representada pelas colunas que solidificam a História, o chofer retorna.
As ações políticas, para Bertolucci, a partir da obra de Alberto Moravia, são ditadas sempre por questões íntimas, experiências de infância, revoltas inconscientes para matar o que se deseja, pelos labirintos da psicanálise. O protagonista é um ressentido, alguém que nega sua própria natureza e, ao que parece, suas raízes e espectros paternos.
Para ele há a mãe decadente, o pai enlouquecido que pede para ter os braços presos pela camisa de força, o professor que o ilumina mesmo que ele não queira – para sua normalidade – sair da caverna. E há o amigo cego, a esposa fútil, o chofer que, ao passo que rompe sua pureza, faz com que Clerici busque o esconderijo aparentemente confortável.
A ele é dada uma arma. Poderá assim matar seu professor, um comunista livre cujas ideias – sempre elas – confrontam os fascistas. A grandeza de Bertolucci, pelas trilhas de Moravia, pela influência de Freud, é não reduzir tudo ao esquematismo barato, às bandeiras políticas que, sabemos, continuam hasteadas nos tempos atuais.
Clerici percebe o caminho rápido à perdição, à qual recaiu quando teve de matar a bela “mulher” sob o quepe masculino, ao se deparar com o desejo sexual. Ele é encarnado agora na companheira do professor que deve matar, em viagem a Paris, interpretada por Dominique Sanda. Nas outras mulheres já a enxergava; e ela própria, espiã ou prostituta, penetrou os castelos simétricos e limpos que guardam os inimigos.
Anna Quadri é um assombro. Seu olhar transborda desejo. O oposto à Giulia de Stefania Sandrelli, cuja sexualização descamba sempre ao infantil, como uma personagem das comédias malucas americanas dos anos 1930. Com Anna, Clerici enxerga a idade adulta, a maturidade de quem faz do jogo político um jogo sexual, e por isso o agarra.
Para mulheres assim, os fracos só podem voltar suas armas. Um pouco perdido, Clerici chega a propor a fuga: arrumar as malas, deixar tudo para trás – o professor, o fascismo ao qual é obediente – e escapar para algum local distante. Oferece o sonho do recomeço que ele próprio, em poucos momentos de força, não pode sustentar.
Anna precisa ser morta para que Clerici prove ser o que sempre foi: um impotente. Antes dela o professor, assassinado com requintes de crueldade que nos remetem a Júlio César, à morte como algo teatral, espetáculo levado a cabo pelos fascistas. Nada escapa ao espetáculo que, com frequência, serve aos mitos, como Bertolucci bem sabe.
Pouco antes de O Conformista, o diretor realizou A Estratégia da Aranha. Utilizou como base um texto de Borges. É a história da construção de um mito, do líder comunista que se revela traidor, das estruturas como elas não são, e de como alguns sempre lutam para que se perpetue a mentira.
O Conformista pode ser interpretado como o contraponto, a detonação do mito fascista. A volta ao homem fraco, àquele a quem interessa a normalidade, o bom cargo, o lugar do burocrata, e que sai de casa, ao fim, com poucas palavras, para assistir à queda do que conhecia e até então não nomeava: uma ditadura.
A fotografia de Vittorio Storaro envolve-nos sobretudo no azul, no peso de uma cor que abarca o imobilismo, a anulação do desejo. Com o vermelho ou o amarelo, com tons mais claros, vislumbramos algum respiro: na dança das mulheres – tão bela, tão libertadora e, ao mesmo tempo, com ares de improviso – e no sexo na cabine do trem.
A jornada do homem pela estrada, em manhã fria, no banco de trás do carro, é a jornada à memória e à aceitação de quem continuará sendo o que sempre foi, dos desejos amputados. Capaz, para nosso pavor, de assistir à morte de um dos poucos seres que ainda lhe geravam inspiração, que ainda podia tê-lo nos braços mesmo sabendo que servia ao fascismo.
(Il conformista, Bernardo Bertolucci, 1970)
Nota: ★★★★★⤴
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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Veja também:
O Conformista, ou uma tragédia coletiva, por Orlando L. Fassoni
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