Esta é a terceira versão da história de vampiro de Düsseldorf, e não é a pior. No caso, a de Joseph Losey leva a palma – pois a transposição de ambiente e motivação constituíram verdadeiro nocaute no cerne do problema. Coloca-se bem Robert Hossein: soube contornar a comparação quase inevitável com o clássico de Fritz Lang, inimitável por muitas razões das quais uma, o desempenho de Peter Lorre, é decisiva. Procurou a abordagem semidocumental, correlacionando, em alegoria inteligente mas nem sempre ao alcance do público, o estado psíquico do personagem central com o estado econômico, social e político da Alemanha de 1930, antes que Hitler ganhasse o poder. E a composição do “seu” vampiro – duplamente seu, porque interpreta e dirige – atinge, por vezes, o patético.

É, sem favor, o melhor ou, talvez, o único filme de Hossein a comunicar simultaneamente a veracidade sociológica e cinematográfica que ele há tanto buscava, sem sucesso. A distorção na linha de comportamento do assassino – quanto à atitude assumida antes por Lang e Losey – que de perseguidor de menores passa a ser, tão somente, um tarado sexual cujas vítimas prediletas são moças solitárias, traduziria, quem sabe, uma concessão moralística, amenizando a oposição natural, indignada da plateia, um horror manifesto pelo monstro? Esse monstro é o próprio Hossein, cuja vaidade sem limite o coloca, numa insistência monótona, censurável, diante da câmera.
Contudo, o clima de terror permanece, a atmosfera é densa, e tensa – tensão e adensamento para os quais contribuem, a princípio, as inserções de sequências, digamos, marginais, de fome, trabalho miserável, desemprego, choques políticos. A reconstituição da época – locais, indumentárias, acessórios, e a descrição de episódios típicos, como detalhes do recrutamento corrupto e prepotente dos nazistas, o início de suas atrocidades contra inimigos, a queima de livros, a formação paulatina das odiosas falanges – é satisfatória, e as inferências que o realizador estabelece com a perturbação mental do tarado-assassino têm viabilidade. Contudo, perde-se Hossein um pouco por teimosia. Fossem suas descrições mais curtas, tivesse optado o diretor pela sugestão – tão funcional no filme de Lang, pois a este não seria possível, provavelmente, já em 1931, adotar passagens realistas ou naturalistas, ainda que o estilo lhe parecesse preferível, para a denúncia, na obra de arte – o teria feito um grande, extraordinário filme!
Como está, resiste como uma tentativa de ensaio de retorno ou evocação a um tipo de cinema aceitável, mas indefinido. Há uma sucessão de abordagens, no que se refere a técnica e métodos narrativos, sem se comprometer o diretor com nenhum, sem se afirmar totalmente em nenhum, mas indo além do digno artesanato. Há sensíveis momentos de cinema expressionista na maior parte do relato: certo romantismo não está ausente, especialmente na sequência do piquenique campestre, onde o lirismo é logo temperado por um comentário de indiscutível sabor jocoso-sensual, à moda de certos melodramas picarescos. Todas as cenas em que a polícia participa, e os chamados enclaves documentais reconstituídos, devem ser tomados como realismo objetivo e deliberado; e as sequências do cabaré Eldorado, a rigor não podem ser classificadas de expressionistas ou impressionistas, mas apresentam similitudes com essas escolas.
Então, será um filme irregular, um pastel, um calidoscópio desorganizado? Não. O milagre é que a plasticidade se oferece sem ter o diretor recorrido a truques medíocres, arabescos ou movimentação forçada de câmera ou luz ou representação, e flui a história – no diálogo econômico, conciso, nas longas e significativas pausas, apenas a música incidental ou um sublinhamento discreto, na angulação expressiva que não se sente, aceitando-a como uma exigência de sensatez.
Sim, é a Düsseldorf de 1930 – ou como a imaginamos, a que nos oferece o filme. Ali, a importância de uma Alemanha esmagada em seus desígnios guerreiros e em seu orgulho nacional na pessoa de um homem impotente cujo desespero se cristaliza no ataque covarde e mortal a vítimas indefesas. Um apólogo? Pode ser. O tarado sexual tem uma paixão tranquilizadora, a jovem cantora da café-concerto, Anna – no traje, o corpete negro, as coxas roliças à mostra, no comportamento debochado e ao mesmo tempo sedutor, na voz rouca que entoa cançonetas ruidosas ao som de violinos, no estabelecimento enfumaçado e mal frequentado, em tudo por tudo, uma notória semelhança com a Lola-Lola de O Anjo Azul, de Von Sternberg. Deliberado? Eis outra incógnita nesse caráter complexo, o diretor Robert Hossein.
O tarado mata, seguidamente, várias raparigas – por detalhes aparentemente insignificantes, que o impelem ao crime. Monstro? Não pretende o diretor fazer psicanálise – felizmente. Faz cinema. Certo, o óbvio da descrição do caos alemão, modelo 1930, às vezes cansa, irrita. Contudo, é um espetáculo, não é? O pobre público que foi colher lá sai tosquiado. Não, não é um vulgar filme terrorífico; mesmo o suspense é estudado, sofisticado, cabotino. Entretanto, convence. Trata-se de um filme que não entusiasma excessivamente, mas se coloca entre os mais interessantes da temporada.
Correio da Manhã (24 de junho de 1966)
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