Através de Lillian (Jane Fonda) retiramos muito de Julia (Vanessa Redgrave). No filme de Fred Zinnemann, encontramos ali o essencial, o traço que as une, que sobrepõe uma à outra: o que torna Lillian o que é, o que pode ser, até mesmo o que lhe dá forças para fazer o impensável, passa sempre pela melhor amiga, a parte mais forte da história.
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Lillian é movida pela outra, existe graças à outra: nutre-se do amor e da ligação à companheira e confidente, não pela causa nobre que a mesma encampa. Julia é sua amiga de infância, de família rica com contornos aristocráticos, estudante de medicina que deixou tudo para trás para se engajar na frente antinazista, na Alemanha dos anos 1930.
A abertura é um quadro, imagem que diz muito sem apelar à mobilidade: sobre um barco, alguém está sozinho à beira de um lago, aguarda o tempo passar. Sua narração resume o filme, a revelação de uma mulher pela outra: “Uma antiga pintura na tela, à medida que envelhece, por vezes se torna transparente”, diz a narradora. “Quando acontece, é possível, em algumas pinturas, ver as linhas originais.” Essas “linhas” levam-nos a Julia.
A narração – sobre o pentimento, ou seja, o vestígio de uma composição anterior abandonada (não totalmente apagada) pelo pintor ao longo de sua realização – ajuda a compreender não apenas a possibilidade de completude de Lillian – à frente – através de Julia – em seu íntimo. Diz muito também sobre uma sugerida relação gay entre ambas.
O filme abre mão do lado carnal dessa relação. Acerta ao ultrapassá-lo, ou deixá-lo no ar. Talvez não exista. O drama força-nos a pensar nisso sem que perca o mistério que corrói os olhos de Lillian ou a franqueza e vivacidade de Julia. Elas nunca deixam de ser verdadeiras, e é curioso como suas diferenças justificam a aproximação proposta.
Da parte de Lillian, a escrita, ou a luta para encontrá-la nos dias em que vive em casa à beira-mar, paraíso de pouco sol de frio aparente, com a quebra das ondas que nos ajudam a pensar no interior dessa mesma mulher conflituosa, ao lado de ninguém menos que o escritor Dashiell Hammett (Jason Robards). Com Julia chegam as inconstâncias; não podemos entendê-la (nem Lilliam pode) como gostaríamos.
O filme todo centra-se na relação não concretizada, não exatamente uma mistura, mas espécie de sobreposição ou passagem – de Julia para Lillian (na infância e adolescência), de Lillian para Julia (na missão que a escritora aceita cumprir ao viajar para Berlim com dinheiro escondido no chapéu, quantia que servirá à resistência antinazista).
Há também alguns detalhes caros: a maquiagem da artista contra o rosto lavado e as mãos sem esmalte da revolucionária. São belezas diferentes, expressões opostas. Em suas vidas, uma passa pela fama, da qual diz gostar. Torna-se exposta, aplaudida, paparicada, “vítima” do sucesso. À outra só restam o esconderijo, o risco, a ação às sombras.
Uma história política feminina (ou feminista), delicada, ao ruído das incertezas que o mundo todo atravessava. Cenas com alguma violência são estranhas e deslocadas, fruto de um pesadelo. Jovens fascistas atacam uma universidade, seus alunos e professores; logo surgem os bustos e as imagens de Hitler no horizonte. Vence a ignorância.
Aos olhos de Lillian nada escapa, ainda que ela não se sinta disposta a embarcar na luta por completo. Se o faz, é pela amiga, em estranha dívida expressa sobretudo nas esperas ou separações, no choro sincero, nas noites sem dormir de alguém que ainda tenta encontrar o que a outra deixou. O filme não traz respostas, o que lhe dá certa grandeza.
Algumas obviedades são dispensáveis. A sequência em que a Julia adolescente ajuda a amiga a atravessar um rio sobre um tronco de árvore é o resumo ao qual o experiente Zinnemann, com roteiro de Alvin Sargent, da obra da própria Lillian Hellman, é tentado e acaba por utilizar. Nem sempre se confia na maturidade do espectador.
(Idem, Fred Zinnemann, 1977)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
O Melhor da Juventude, de Marco Tullio Giordana