A pequena Jeannette encara a câmera mais de uma vez, inclusive no primeiro e extenso plano de abertura. Encara-nos em gesto de confrontação. A opção narrativa exerce duas funções: a primeira é para fazer do espectador sua testemunha enquanto questiona Deus e, no caso da segunda, para romper a ilusão do universo fechado.
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Escancara-se uma encenação que se verá completa com o uso da música. Jeannette: a infância de Joana D’Arc, do sempre original Bruno Dumont, brinca com o espetáculo à vista, mas um espetáculo que guarda os sentimentos de uma criança – depois uma adolescente, quase mulher formada – no que soa como estado de delírio.
Cabe tudo no choque da câmera subjetiva: para nós, o sentimento de que nada é real enquanto uma certa representação da infância pede socorro. O filme pode ser interpretado como uma tentativa de se escapar às pressões religiosas sem deixar de crer em Deus; Jeannette vê-se submetida às Suas forças enquanto descobre as próprias, e cresce.
Estará igualmente disposta, mais tarde, a se lançar de cabeça no que crê e a fazer algo por seu país. Não faltarão perguntas, desde o início e através da música, sobre as escolhas de Deus. Produtos de famílias cristãs, tendemos a crer, um dia, que uma folha não cai de um galho sem que haja vontade superior. A pequena Jeannette parece remar contra a tendência.
“Quatorze séculos de cristianismo. Ainda não há nada. Nunca há nada. E o que reina na face da Terra não é nada além de perdição”, ela canta. “O que você fez com seu povo Cristão? Você poderia ter enviado seu filho em vão? E Jesus poderia ter morrido em vão?” E mulheres como ela, ali, esquecidas entre montes de areia, riachos e ovelhas, não estão também presas à condenação dada pelos seus próprios papéis?
A pequena Jeannette caminha por riachos em planos longos. Dumont tem calma, reconhece a importância do espaço para esse filme incomum. Sentimos a areia nos planos em detalhe dos pés da menina, a lã que reveste o corpo da ovelha. A forma musical contribui para o sentimento de proximidade. A futura Joana D’Arc comunica-se pelo espírito.
O rock reflete sua revolta. Ao seu som, chacoalha a cabeça com cabelos soltos. Do seu olhar saltam pessoas duplicadas – a senhora Gervaise – e santas que flutuam. As primeiras falam que Israel e os cristãos não conhecem a felicidade e que não é possível perguntar algo a Deus. A criança não se contenta mesmo quando parece não ser ouvida.
Algumas sequências musicais surgem desajeitadas. Dumont não está em busca de um filme com coreografias perfeitas. Sua experiência invoca o fantástico sem renegar o real, em clima leve. Os rodopios da menina Jeannette (Lise Leplat Prudhomme) e, depois, da adolescente Jeanne (Jeanne Voisin) são de dançarinas amadoras.
De dramas frios e contundentes como A Humanidade, Flandres e, no campo da religiosidade, O Pecado de Hadewijch e Fora de Satã, Dumont encontrou, a partir de O Pequeno Quinquin, um universo cômico particular e, com ele, um cinema de estrutura e personagens maleáveis. Jeannette está mais próxima de Quinquin do que dos anteriores. A alma da sua protagonista é parte leveza, parte rock’n’roll.
(Jeannette, l’enfance de Jeanne d’Arc, Bruno Dumont, 2017)
Nota: ★★★☆☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
O Reflexo do Mal, de Philip Ridley