A pequena Bernadette prefere ser chamada de Benni. Quando lhe perguntam o motivo, ela diz que não gosta do nome que lhe deram. Também não gosta da vida que precisa levar, contra qualquer possibilidade de escolha. A protagonista de Transtorno Explosivo foi deixada pela mãe aos cuidados do serviço social, longe da família que tanto deseja.
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O cotidiano da menina de 9 anos é uma “montanha-russa”. Por uma corrida de altos e baixos, de curvas repentinas, suas subidas – as explosões de fúria – são mais constantes que as quedas – os instantes de calmaria. Poucos filmes apresentam uma criança nesse limite, indefinível ao olhar leigo, entre histeria e amor incondicional.
Por ser criança, é sempre mais intensa, mais difícil de compreender. A opção da diretora e roteirista Nora Fingscheidt é seguir a menina sem explicá-la. O que faz uma criança sem família, sem mãe? Como tanta energia destrutiva – seguida de palavras fortes, golpes que a fazem sangrar e lotam seu corpo de hematomas – emana de tal personagem?
A resposta possível sempre recai na família inalcançável, na mãe estranha, distante, igualmente feita de altos e baixos: às vezes disposta a ceder seu tempo, a amar, às vezes tomada pela fraqueza de quem não pode criar uma filha aparentemente problemática.
Nesse cinema de estilhaços, de montagem acelerada e momentos de falsa calmaria, a menina insiste em não se enquadrar. Não responde aos cuidados, conselhos e apelos dos que a cercam. É a parte – na verdade, o todo – que nos entristece: não há solução possível nesse universo em que o mais frágil dos seres torna-se o mais perigoso.
Somos colocados em um túnel frio no qual professores e psicólogos entreolham-se com estranheza, não raro com inconformismo, impelidos a se envolver. Toda a experiência física que daí emana não é menos reveladora ou envolvente. A intensidade que transborda de Benni (Helena Zengel) – de seu corpo em constante movimento, de seus gritos – canaliza o que há de pior e, depois, em alguns momentos com o novo tutor, o oposto.
O filme só não é mais realista por algumas opções visuais de Fingscheidt, como nos momentos em que algumas visões distorcidas cortam a tela. Ao que parece, são memórias e traumas da protagonista, vivências que ela repele e não consegue enxergar.
À frente, após fugir, ela será vista em meio à mata, no gelo, cara a cara com os animais. A coruja que ela não havia encontrado de repente aparece. Esse ser noturno talvez veja o que nós não podemos. Benni refugiou-se na mata gelada após brigar com o já citado tutor, o funcionário do serviço social Micha (Albrecht Schuch). Antes da fuga ambos se encaram. A expressão dele revela-nos a impossibilidade de salvá-la; a dela, a impossibilidade de ser compreendida, também a emanação de rebeldia.
O grande acerto de Transtorno Explosivo é não se preocupar em agradar. Sua criança é real, vive aos berros, solta observações inesperadas sobre a morte. O fim é sempre a natureza, diz Fingscheidt. Nada há de espiritual. Resta a Benni a casinha para abraçar o cão que antes confrontava, animal que agora aceita seu afago e com ela divide espaço. O que os adultos – mães distantes, educadores ou médicos – não conseguem oferecer.
(Systemsprenger, Nora Fingscheidt, 2019)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
O Senhor das Moscas, de Peter Brook