O Reflexo do Mal, de Philip Ridley

Os closes do pequeno Jeremy Cooper sugerem um terror convencional, nada a ver, portanto, com o resultado que pretende atingir – e que em alguma medida atinge – este O Reflexo do Mal. Sua face na tela, somada à música de Nick Bicât, produz efeito estranho, a ideia do garoto preso ao seu próprio universo, à sua natural limitação.

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Estamos sozinhos com o menino, com a infância, com seu medo e suas descobertas. Tudo somado, tenta-se elevar o pavor, criar o clima – ou, como se percebe nos instantes finais, a revelação que ataca o mesmo olhar inocente: o mal não tem nada a ver com vampiros ou seres sobrenaturais; está ligado ao real negligenciado que se deve descobrir.

A inocência recobre-se de fantasias a ponto de se tornar perigosa. Aceita-se a ficção das histórias em quadrinhos – para quem ainda não tinha o cinema, a televisão ou livros nos Estados Unidos profundos em questão, pós-Segunda Guerra Mundial – como verdade. Dessa forma, é mais fácil ver o mal na vizinha do que na própria mãe.

Seth Dove (Cooper) brinca com os amigos nos primeiros instantes de O Reflexo do Mal. A brincadeira dá lugar à pura maldade: eles inflam um sapo para depois explodi-lo no rosto da já citada vizinha, mulher que veste preto, viúva à qual restam, em solidão, toques no próprio corpo, desejos sexuais sem ninguém para contê-los – em cena reveladora.

O jovem protagonista crê que a vizinha é uma vampira que ataca homens indefesos, responsável pela morte do próprio marido. Das páginas da revistinha lida por seu pai, inclusive com a capa que remete à própria mulher em sua casa isolada e cercada por vegetação, o caminho mais fácil é dado pela imaginação fértil.

O menino conduz-nos a esse trecho estreito no qual o mal encontra reflexo em quem ele não pode compreender, no mundo que ele apenas acredita poder enxergar. Na verdade, a fantasia encobre o pior da realidade: o pai culpado por desejos homossexuais, a mãe abusadora, o irmão que viu a aniquilação do homem na guerra e voltou para casa.

Das palavras “incompreensíveis” da professora com costumes inacreditáveis (como guardar o óleo com o cheiro do marido, a coleção de mandíbulas de monstros marinhos, o velho arpão) colhe-se a estranheza que só pode combinar com o vampirismo. Uma mulher bela e sexualmente ativa, mas escondida, sob o preto do figurino, óculos escuros.

O perigo da inocência: tomar a explosão do animal como brincadeira, a mulher solitária – tão perto da loucura – como devoradora de gente. Nessa América escondida, pelas estradas e plantações a lugar algum senão aos mesmos ambientes hostis, a violência espreita e os suspeitos – aos olhos da polícia, da comunidade, do menino – são sempre os mesmos.

O diretor Philip Ridley, com roteiro de autoria própria, aborda os perigos dessa prisão à qual, por opção inteligente, o irmão mais velho não quer voltar. Ex-soldado, ele viu seu país lançar bombas sobre outras nações, o brilho insuportável produzido pelo choque destas com o solo, e só voltou mesmo por causa da morte do pai. Vivido por Viggo Mortensen, ele apaixona-se pela vizinha vampira (Lindsay Duncan), para o desespero do pequeno Seth.

O drama do menino é não compreender o próprio mal. Em suas fugas e maneiras de lidar com a morte dos outros, leva-nos a pensar em filmes fundamentais como Brinquedo Proibido e O Espírito da Colmeia. Tão perto, os verdadeiros assassinos, em carro preto, cruzam a paisagem, não se explicam. O protagonista observa-os sem acreditar que possam ser os culpados. Logo eles, verdadeiros, um pouco banais, distantes – jovens da época, desmiolados vestindo preto e com cabelos engomados a gel.

A bela obra de Ridley é mais – muito mais – que seus momentos de livre exaltação do rosto infantil. De tão estranha – com viúvas inconsoláveis, pais de família culpados, fanatismo religioso, crianças mortas -, a realidade recorre ao toque sobrenatural, ao olhar infantil.

(The Reflecting Skin, Philip Ridley, 1990)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Brazil: O Filme, de Terry Gilliam

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