A cada hostilidade contra sua estrutura frágil, a protagonista de Uma Criatura Gentil volta a face para outro lado, prefere o silêncio, caminha, aceita um conjunto de relações sociais que nunca a inclui, com lugar apenas aos mais fortes. Ou a qualquer um que possa usá-la, depois jogá-la fora, a salientar sua quase inexistência no filme de Sergey Loznitsa.
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Ela é interpretada por Vasilina Makovtseva. De pouca voz, sem nome dado, é sobretudo uma expressão: alguém cansada, ainda assim incansável, alguém que precisa entrar em contato com o marido, em luta contra um sistema indiferente às pessoas. Em sua viagem à prisão para visitar o marido, ela esbarra em seres de todos os tipos, poucos com boas intenções.
A maior parte quer retirar algo, reduzi-la à mercadoria. Ou ignorá-la. Na cadeia, a protagonista é apenas avisada que a visita ao marido não pode ser feita. Sequer dizem se o homem está no local e quais são suas condições. A viagem inclui ônibus, trem e caminhadas que não terminam nunca. Loznitsa aproxima-se de Kafka.
A opressão que recai à mulher, sabemos, é fruto da repetição: voltas e mais voltas sem sair do lugar, sem encontrar saída. Ela atravessa ruas com nomes de antigos líderes soviéticos (ironia clara) e termina encurralada entre paredões, (mal) encarada por policiais, de carona com um cafetão e sem respaldo de uma organização de direitos humanos.
Nem pelas portas do sonho – a porta possível, imaginamos – ela pode ter o devido acesso à justiça. Depois de dormir na estação de trem, é acordada e convidada a embarcar em uma carruagem, a adentrar uma casa de madeira com detalhes coloridos, sob o calor da luz aos cantos, e que esconde outra sala com convidados distribuídos por uma mesa e um líder fardado, sob a força do branco em excesso, o que alimenta o clima onírico.
O militar dá a palavra a diferentes pessoas que passaram pelo caminho da protagonista ao longo dessa viagem. O acesso à possível justiça, diz Loznitsa, é um teatro de falsidades, de aparente segurança, o único momento em que vemos Makovtseva de cabelos soltos, a observar o julgamento pela fresta da porta. Recordamos O Processo: cada pessoa tem sua porta de acesso à justiça, sempre negada pelo guarda postado à frente dela.
Enquanto seguimos com a mulher por caminho imprevisível, não é difícil lembrar de Minha Felicidade, outra extraordinária incursão de Loznitsa pelos possíveis meandros do acaso. O Leste Europeu revela-se violento. Tal como em Uma Criatura Gentil, o anterior toca o passado, traz imagens da antiga União Soviética. Essas pessoas, em pequenas ou grandes participações, são produtos dessas raízes, de conflitos e guerras.
Para sua criatura isolada, sofrida, Loznitsa constrói sequências inteiras com muitas pessoas. Em mise-en-scène arriscada, a protagonista – nem sempre de forma gritante – é destacada dos demais. E, não por acaso, ao fim, o realizador insiste em voltar à situação que deu origem a um de seus primeiros curtas-metragens, Polustanok, de 2000, no qual a câmera flagra diferentes pessoas dormindo em uma estação de trem.
O sono de todos, o espaço da igualdade, de pequenos sons, desse povo sofrido que precisa dormir em lugar público para continuar se deslocando. No sono, diz Loznitsa, todos somos iguais. O cansaço iguala. Eis um cinema que se equilibra o tempo todo entre o humano sozinho e os efeitos do grupo. Sua “criatura gentil” não consegue reencontrar o marido, perambula pelos arredores da prisão e é obrigada a dormir na estação de trem.
A ela sobra o sono. Fora dele não há descanso possível. Na imagem mais bela e esclarecedora do filme, ela está no ônibus entre desconhecidos. É a única mulher no veículo. A cena não deixa mentir: é um quadro de opressão.
(Krotkaya, Sergey Loznitsa, 2017)
Nota: ★★★★☆
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Veja também:
Whity, de Rainer Werner Fassbinder