Uma menina desconhecida leva a mão à boca, está assustada durante a sessão de Frankenstein. Ao seu lado, a protagonista arregala os olhos, fixa a expressão, transfere a nós seu sentimento de descoberta e pavor em O Espírito da Colmeia. No pequeno vilarejo em que o cinema aporta, ela descobre o medo e sua estranha relação com o real.

A vida impõe espaços e situações aterrorizantes: quartos escuros, homens assassinados, cogumelos com veneno. O letreiro inicial – “era uma vez…” – é quase um alento. Estamos fincados nos olhos de uma criança que pouco ou nada sabe sobre a vida; participamos de sua caminhada e, às vezes, temos mais dos outros que a cercam, como pai e mãe.
Ana (Ana Torrent) surge através do filme apresentado na cidade. A escolha narrativa de Víctor Erice é interessante: não é a protagonista que escolhe o filme; o público já está na sala, as pessoas estão postadas à espera da obra mágica de James Whale, e dela nasce o olhar da criança, seu medo, sua descoberta, a síntese de nossa relação de troca com o cinema. É o filme que escolhe a menina com a qual seguiremos até o fim.
Na Espanha franquista de 1940, a ficção cinematográfica embrenha-se na vida da menina que, em algum momento, não conseguirá mais separar real e imaginário. O monstro da tela produz questionamentos enquanto produto de cinema, matéria do impossível, para ela com peso e validade. Por que ele mata uma criança? Por que querem matá-lo?
Ana questiona sua irmã sobre o desenrolar da fita de Whale, o que provoca uma fissura entre as meninas: segundo Isabel (Isabel Tellería), tudo o que está na tela não passa de ficção e, por isso, não vale fazer tais questionamentos. Mas a descoberta do “espírito” proposta por Erice depende justamente da combinação de elementos que, sabemos desde sempre, formam nossa própria existência; como Ana, somos filhos do medo da porta fechada, dos monstros que sussurram nos bosques, desse espaço de sombras que reflete conflitos reais.
Compreender Ana e seu olhar é mergulhar com exatidão no clima triste e de perdas constantes do fascismo espanhol, é perceber o espaço o qual habitam os monstros, a dor da mãe que escreve cartas para alguém, o trabalho repetitivo do pai que se debruça sobre abelhas e busca compreender o que torna possível o incessante movimento da natureza.
De que espírito fala? Interessante compreender o quanto esse agente imaterial casa-se – e em alguma medida confronta – à ideia da natureza indiferente, ao ciclo da colmeia, de pequenos seres assistidos a olhos atentos. O espírito é o que justifica nossos medos e incertezas, o que não pede para entrar, o que, no caso da criança, pode fornecer certezas.
Ana esperava pelo homem que desceu do trem e se refugiou no casebre em campo aberto, espaço árido. O suposto revolucionário perseguido deixou por ali uma pegada. A menina percebeu seu tamanho, sentiu sua presença. Sua materialização e, depois, seu assassinato confirmam o que o filme de Whale havia lhe ensinado na sala escura, dias antes: os “monstros” não são maus, mas incompreendidos, a depender de seu tempo.
É preciso o monstro de Frankenstein para conhecer melhor aquela vila em que nada parece acontecer, em que a natureza é vista em toda sua secura. Na estação de trem, quando a mãe leva uma carta para colocar no correio, diferentes pessoas observam-na com estranhamento. Faces distantes, reconhecem-se, entre cumplicidade e derrota.
A indiferença permanece. O casal quase não conversa. Há silêncio, frio, caminhadas aos bosques e, no caso de Ana, àquele casebre que esconde seu fantasma. Após a morte do revolucionário, seu corpo é colocado na mesma sala da cidade em que são exibidos os filmes. O cadáver coberto, de pés expostos, é visto sob a tela branca.
Poucas imagens conseguem expor de maneira tão perfeita o que fica na ausência da arte e, nesse caso, do cinema. Sem Frankenstein ou qualquer outra reprodução a alimentar nosso imaginário na sala escura, resta o cadáver – a morte em toda sua frieza e distância – sob a tela branca, sem movimento e instantes de magia.
(El espíritu de la colmena, Víctor Erice, 1973)
Nota: ★★★★★⤴
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
Parabéns Rafael,seus textos são primorosos.
Obrigado! Abraços!