Shampoo, de Hal Ashby

O problema de George, o bonitão de cabelos avolumados interpretado por Warren Beatty, é não conseguir deixar nenhuma mulher para trás. No seu caso, na Los Angeles do fim dos anos 1960, horas antes de Nixon tornar-se presidente e meses antes da gangue dos Manson provocarem um banho de sangue na cidade, é não conseguir não fazer sexo com elas.

Enquanto reluta em dizer “não”, ou viver sob as amarras que não suporta (e não precisa dizer; compreendemos seus instintos), corre a comédia que oculta o drama. Vemos em Beatty um meninão abobalhado sem poder sobre seus atos – ideia corroborada por um dos roteiristas de Shampoo, Robert Towne, como lembra Peter Biskind em uma das páginas dedicadas à obra em Como a Geração Sexo, Drogas e Rock’n’Roll Salvou Hollywood: “Ele não seduz ninguém; ele se deixa usar. Ele é a garota, a loura burra.”

George deve algo às personagens dos anos 1930. Figuras que vivem mais e pensam menos. Alguém legado às sombras, que cansou de ser devorado e, em sua vontade de devorar, ou apenas de abrir o próprio negócio, um salão de cabeleireiro, mostra que quer crescer. Ao não conseguir, cabe-lhe o fim amargo, ao mesmo tempo sua prova de autenticidade.

O filme de Hal Ashby é muito mais duro do que indica sua superfície ensolarada, suas grandes casas com professoras de tênis, festas liberais, mulheres maduras sexualmente libertas e alguns endinheirados incapazes de enxergar a verdade enquanto, com o poder que detêm, fazem a roda da mesma cidade gerar – à revelia de gente como George.

Há dois universos que se tocam e não se encontram nunca. O roteiro de Towne e do próprio Beatty é sobre essa desconexão: há quem viva para jantares caros enquanto se celebra a chegada do partido republicano ao poder; ao lado, há quem viva das bordas: os amantes desses mesmos ricos e ricas, seres peçonhentos e quadrados.

Da nutrição compartilhada entre lados há quem retire mais e quem não tenha direito a nada. Previsível: por que alguém um tanto desconectado como George terminaria com a conquista de seu negócio e a mulher que ama? Ou, desde sempre, com a consciência de seu lugar na selva que finge civilidade? A ele cabe a incontornável realidade.

A confissão de seu amor, com certeza de que a mulher também o ama, não assegura um final feliz. Qualquer outra opção não funcionaria. No reino em que todos movem-se pelo dinheiro, em que um velho rico (Jack Warden) chama a amante (Julie Christie) de prostituta para depois sair à sua procura, apenas George termina sem nada. Terminamos com ele, enquanto assiste à amada ir embora com quem não ama.

George namora Jill (Goldie Hawn) e é amante da rica Felicia (Lee Grant), casada com Lester (Warden), por sua vez amante de Jackie (Christie). No passado, George e Jackie foram namorados e, nesses encontros e desencontros próximos do resultado eleitoral, em 1968, eles voltam a se encontrar. Cada um serve ao seu amante, ao seu papel – ainda que o protagonista não tenha grande consciência de seu lugar no tabuleiro.

A certa altura, George acompanha Jackie e Jill a uma festa de simpatizantes dos Republicanos, na noite da apuração dos votos da eleição. Estão ali Lester e Felicia, além de outras pessoas que falam de negócios em qualquer ocasião. Para o homem velho endinheirado, George é o amigo gay das belas mulheres que o cercam.

A festa termina e vem outra. O abismo é claro: George, Jackie, Jill e Lester vão parar em uma mansão ocupada por outras tribos, bebidas, drogas, banhos de piscina com meninas e meninos nus, tudo liberado. Essa outra América, distante dos ricaços de terno, converte-se no cenário das revelações, da permissividade que as mesmas personagens não suportam.

Em Shampoo, vencem o dinheiro e o comodismo. A impressão de transformação, no dia seguinte, indica o mesmo lugar. A festa liberal é passageira. Alguém que só quer viver para fazer sexo e amar como tanto se amou naqueles anos está condenado a continuar nesse mesmo lugar, com ainda menos do que tinha no início da jornada.

(Idem, Hal Ashby, 1975)

Nota: ★★★★☆

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

Veja também:
Os Russos Estão Chegando! Os Russos Estão Chegando!, de Norman Jewison

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