Dois jovens frustrados nunca se encontram ao longo de A Nau dos Insensatos: o rapaz de 19 anos, virgem, precisa de dinheiro para desfrutar de uma noite com uma prostituta; tão longe e tão perto, a jovem sofre, ao lado do pai e da mãe, por não ser convidada a dançar, por não se sentir atraente nos bailes do navio em que se desenrola toda essa história.
O encontro de ambos, pensamos, muito resolveria: seria uma espécie de inclinação à pureza não vista, um enlace conveniente, um respiro ao cataclisma que quase todos insistem em não enxergar, em 1933, com a ascensão nazista na Alemanha. O navio em questão vai do México à nação de Hitler e, durante alguns dias, oferece vidas paralelas, pessoas que se cruzam, que lutam para se suportar, bando de tolos.
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O adjetivo é dado pelo mestre de cerimônias, em conversa com a câmera e cuja grandeza não se reflete no físico: é o anão Glocken (Michael Dunn), um dos poucos a enxergar o verdadeiro problema. No início e no fim, ele encara a lente e nos deixa uma importante pergunta: o que tudo isso tem a ver com nós? Ou poderia ser: por que nós, parte daquele navio, insistimos em não enxergar seus problemas e permitimos que continue a navegar?
O diretor Stanley Kramer, com roteiro de Abby Mann, do livro de Katherine Anne Porter, oferece um punhado de dramas para nos fazer pensar na brasa sob os pés das personagens, no odor do enxofre que encontra bloqueio no perfume da mulher madura, alguém que não se assume como isca para homens interessantes, que viaja para negá-los e oculta seus desejos.

Tal dama, interpretada por Vivien Leigh, alimenta-se desse tipo de perfume: até consegue enxergar a podridão que a rodeia, os avanços de um tosco anti-semita (José Ferrer), a animalidade de um atleta chegado à bebedeira (Lee Marvin), a impotência de um artista de esquerda (George Segal) que deseja representar as massas, e só elas.
Ao negar o pior e se deixar levar por aquilo que foi, como vemos na sequência em que dança por um corredor (a música é a memória do tempo perdido), ela prefere a mágica à realidade, ainda que esta lhe bata à porta. É o próprio homem, o bruto, o engano, quem lhe tomará nos braços para logo ir embora, em busca de alguém mais jovem.
É difícil encarar a senhora Leigh em seu último filme e não pensar em sua encarnação definitiva de Blanche Dubois, personagem de Tennessee Williams de Uma Rua Chamada Pecado. À violência que ataca – no bruto que invade seu quarto e lhe toma nos braços, ou no mundo real que se mortifica – ela responde com plumas, maquiagem e perfume.
O tom está dado: Kramer deixa a questão política direta e seus embates, de filmes como Acorrentados e O Julgamento de Nuremberg, para abordar o que sobra nas entrelinhas, no social afetado da primeira classe que assiste com certa indiferença à verdade no corpo dos maltrapilhos, entulhados, que viajam na terceira classe do mesmo navio.
Quando um homem pobre, de passagem, perde a vida para salvar o cão (“filho”) de uma ricaça, alguém questiona por que ele faria isso. A essa vítima do instinto e da bondade, um artesão, não temos muito acesso. Ainda bem. Ele é visto com bons olhos pela personagem que nos liga à parte baixa, outro artista (Segal). O último homem bom está morto.
O artista de esquerda está destinado a viver com a última mulher com quem deveria viver. Ele ama, não há saída. O judeu alemão que volta para sua terra – para a própria morte – é igualmente vítima de um amor cego, ainda que haja alguma justificativa racional em seu caso: ele tem orgulho da terra que deu à luz Ludwig van Beethoven.
O que os nazistas fariam com tantos judeus? Poderiam evitá-los, excluí-los, ou matá-los? O anão tem a resposta, mas é tarde para conclusões: em movimento contínuo, o navio segue contra os tolos que carrega; o judeu não tem outro destino senão encontrar o que parece ser seu próprio fim, logo ele, acostumado a sentar em mesas separadas.
Em um filme com tantas personagens, não podemos esquecer os candidatos a protagonista: Oskar Werner, o médico desiludido e com problemas cardíacos, e Simone Signoret, a condessa deportada que dá a esse mesmo homem seu último sopro de paixão. Sem idealismo e inocência, eles apenas se deixam levar, presos a seus papéis.
Algumas consciências fracassaram. Confiança e comodismo falaram mais alto. As palavras de Glocken retornam, atacam: todos nós somos representados por essas pessoas, todos a bordo desse navio – de atletas e artistas impotentes, de antisemitas e judeus em um mesmo cômodo – cujo destino final é o pior dos homens, o nosso pior.
(Ship of Fools, Stanley Kramer, 1965)
Nota: ★★★★☆
AUTOR: Rafael Amaral, crítico e jornalista

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