Soberba, de Orson Welles

A velha linhagem abastada conjuga beleza e poder. Aos olhos do inventor Eugene Morgan (Joseph Cotten), será magnífica mesmo quando derrotada, prestes a desaparecer. A plutocracia não resiste à era das máquinas, das invenções, sobretudo à velocidade, na virada do século 19 para o 20, com a chegada dos automóveis e do cinema.

Sobre a primeira invenção muito se fala. Eugene é um de seus criadores. Sobre a segunda, ela está na forma de Soberba, de Orson Welles: do primeiro plano – geral, sem movimento – à profundidade de campo e à recusa da decupagem clássica, a evolução dessa arte é aliada ao fim de um estilo de vida, uma forma de ser, um grupo de pessoas.

A família que definha é o poder centralizado, ao qual se chega pelo laço de sangue. Família que, em mais de um momento, nas visitas e bailes em sua grande casa (sempre ela), será vista à sombra, à frente da mobília antiga. Seus membros estão ali enraizados, no quadro que insiste em não mudar, ou na criança de kilt e cachos em forma de parafuso.

Que seja vista em detalhes, com todas as suas camadas e profundidade, e que, em muitos momentos, sejam recusados plano, contraplano e close-up, é o indicativo de podem ser – e são, sabemos – normais como outros quaisquer. Ainda assim, é justamente o inventor, a quem se abre um novo mundo (e o qual ele mesmo ajuda a abrir) que insiste em tratar a família como magnífica. Seus motivos são mais que sabidos.

Antes de chegarmos aos detalhes sentimentais dessa história, à noite em que Eugene caiu em frente à casa da pretendente Isabel Amberson (Dolores Costello), quando deveria lhe encantar com uma serenata, é importante se ater ao primeiro plano, um plano geral. A casa. O bonde fora dela, empurrado por homens. A mulher que tem tempo para tomá-lo. O tempo.

Welles aborda o velho mundo, o que Soberba – sobre como o novo sempre se impõe, e sobre como a nostalgia trai (sobretudo quando imbuída de amor real) – contrasta. Para a mãe, para seu filho, para o pretendente que ainda espera ter a mulher que ama e para sua filha, que igualmente não pode ter o rapaz que ama (a despeito do encerramento deslocado).

A primeira imagem – na forma, não no conteúdo – parece saída de um filmete dos Irmãos Lumière. Se aos inventores das novidades, no nascimento do cinema, era atrativo captar imagens de um mundo moderno e pujante, a velha carruagem dá-nos o oposto.

Passado próximo, superado. Tempo que dita, curiosamente, o que aquelas pessoas viveram (de dentro de sua grande casa, a mulher pode olhar o bonde da janela, descer, sair, e o transporte ainda estará à sua espera) e o que o próprio Welles precisa ressuscitar (a sequência em sua integridade, sem cortes, sem decupagem clássica).

Esse plano geral magnífico do bonde e da casa, do movimento dos seres, tão chapado e, por isso mesmo, tão “primitivo”, conta os primórdios do cinema quando sabemos – e sabemos bem após sessões de Soberba e, antes, de Cidadão Kane – as profundas mudanças pelas quais essa arte passou. O retorno ao plano – ao tempo real – é a própria valoração do passado, a história que nos conta Soberba.

Contudo, a construção cinematográfica de Welles não se resume à ausência da montagem. Seus planos vivos apostam no movimento, no balé dos seres pelo salão de dança, no avanço dos corpos casa adentro, no avanço oposto (e no recuo da câmera) enquanto conversam, em outros diversos movimentos que exploram a geografia da mansão (sempre ela) cada vez mais vazia, na qual sobram George (Tim Holt), o filho que não aceita a relação da mãe com Eugene mesmo após a morte do pai, e a tia Fanny (Agnes Moorehead).

O rapaz mimado enxerga a realidade de seus tempos, dos tempos que, acredita ele, não podem terminar. A plutocracia na qual ele está solidificado – em toda sua arrogância – será literalmente atropelada pela nova velocidade do mundo, pelo tempo-dinheiro que detona com os traços da aristocracia às sombras na qual estão inseridos os Ambersons.

Se por um lado Welles lança-nos na escuridão e nos planos estilizados, na profundidade e, em momentos, no aspecto de filme de terror, por outro há planos-sequência de imensa realidade. O melhor exemplo é o momento em que George e a filha de Eugene, Lucy (Anne Baxter), conversam a bordo da charrete. A câmera põe-se ao lado, depois à frente, circunda as personagens – não estando fixada no meio de transporte.

Outro momento que vale destaque é o da caminhada do mesmo casal pela rua. Enquanto ele conta à moça que está prestes a ir embora, ela finge não se importar. Ao fundo, é possível ver a fachada de lojas e do cinema. Um dos filmes exibidos é de Georges Méliès. Nessa era de novidades e transformações, o cinema do grande ilusionista marca terreno.

Kane e Soberba são falsas histórias de amor. Seus amantes são aniquilados pelo tempo, o grande algoz. Nas narrativas de Welles, cada elipse significa uma erosão maior iniciada no plano anterior, resposta à impossibilidade de vencer a batalha seguinte. Em Kane, há a incrível cena do jantar na qual homem e mulher, à mesa, estão cada vez mais distantes; em Soberba, bom exemplo está nas idas de Eugene à porta de Isabel, sem nunca encontrá-la.

Sabemos desde cedo que Eugene é a face do progresso bondoso, consciente dos próprios problemas, realista, mas incansável. Cabe a George o máximo do riquinho apaixonado pela própria mãe, subitamente atraído pela filha do outro.

Quem tenta fazê-lo enxergar, ou inflar com ódio, é a tia Fanny, talvez a personagem mais importante de Soberba, com a qual Welles finge ceder uma coadjuvante. Por ela, o amor beira a loucura, é posto em outro nível. Em cena forte, ela desequilibra-se e diz ao sobrinho, antes de ser segurada nos braços, que não se importaria em ser queimada.

Moorehead tem olhos de rancor, de quem entrou na grande casa pela porta dos fundos e saiu pela mesma. A solteirona que veste preto e se posiciona ao alto da escada para tudo ver e depois conspirar, que prepara tortas que o sobrinho adora e fala sem parar sobre as fofocas que correm na sociedade. Não teve ao lado o homem que sempre amou, ainda que o estranho encerramento indique que a espera pode ter chegado ao fim.

Do livro de Booth Tarkington, à base de uma montagem à qual Welles não teve controle (estava no Brasil filmando É Tudo Verdade), Soberba deixa esperança: aos rejeitados há saída, lufada de felicidade em uma história sobre a degradação de certa forma de viver, antes de as máquinas atropelarem os seres, de o mundo ficar mais rápido e impessoal.

(The Magnificent Ambersons, Orson Welles, 1942)

Nota: ★★★★★⤴

SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)

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