A água do mar (primeiro) e a lama (depois) ajudam a mergulhar no drama da protagonista de O Piano, de Jane Campion. O mar puxa a mulher a suas profundezas, ao túmulo escuro em que terá de enterrar seu objeto de voz, seu instrumento musical, parte da sua própria alma; a lama representa seu impasse, o casamento arranjado, o difícil movimento.
Ao desembarcar em sua nova terra, a mulher assiste à vinda das ondas. Passam entre suas pernas, proporcionam, revoltas, a limpeza dos pés que logo estarão fincados na lama. A mulher será presa ao marido impotente, apaixonado por suas terras, apenas por elas, e ao amante que compra o piano para se aproximar e conquistá-la.
Ada (Holly Hunter) vive um impasse: estar com o marido, que prefere conservá-la na imagem da companheira calada, sempre ao lado, e sem seu piano; ou se deixar levar pelas negociações do outro, estranho com rosto tatuado que pede seu corpo e, naqueles encontros em sua cabana, deixa que ela toque seu instrumento.

O que antes soa horrível ganha nova camada: em suas idas ao piano, ao encontro de sua própria voz, Ada descobre sentimentos pelo rústico e tatuado, interpretado pelo sempre ótimo Harvey Keitel. O marido, a certa altura, ao descobrir o caso adúltero, não entende que a razão dessa entrega está no concedimento da voz: o piano.
O marido traído (Sam Neill) aceita a carne, não os sentimentos. Fica entre frestas, olhos plugados no caso extraconjugal que lhe atinge, para ver, enfim, o corpo da mulher, seu lado aparentemente livre, seus desejos escondidos sob o vestido, a saia e a espécie de gaiola que segura esta, que não se desmancha nem entre lama cinzenta.
Frouxo, ele certamente delicia-se com seu voyeurismo infantil, o do menino tolo que nada sabe sobre sensibilidade, menos ainda sobre arte, por isso mesmo descredenciado da função de companheiro possível. Ada corre ao outro, ao bruto, àquele que, entre tantos selvagens, ainda consegue verbalizar sentimentos enquanto permite que ela toque, que tenha contato com seu instrumento, sua essência.
Ao devolver o piano à mulher, o amante confessa seu passo em falso: o jogo que propôs, o das teclas em troca do corpo, tornou-o um desgraçado, ela uma prostituta. Não há mais o que fazer: não se vive sem sentimentos. Antes dele, Ada contava apenas sua voz interna e a possibilidade de vazão desta através do piano.
Depois, sem ele, descobre que pode expressar emoções para além de suas teclas, de seu objeto quadrado e domado, o qual terá de enterrar, ao fim, no fundo do oceano. Fosse a mulher de sempre, aceitaria ficar com o mesmo, à escuridão; mudada como está – apesar das dúvidas ao fim, nesse transbordar de humanidade -, escolhe a superfície.
Para sua mulher muda, Campion oferece mais que o piano: sua viagem de descobrimento, ao casamento que não leva a qualquer lugar senão à lama, terá de terminar no oceano, em suas ondas revoltas, em sua inesperada – mas natural – maré alta. À beira dele, as mulheres, mãe e filha, assistem ao fim ou ao início, joguetes da vontade masculina.
Para a mãe que não fala, a filha que fala demais. Cansa-nos de tão irritante. Ao gritar, respira, deixa ver o que não pode ser condenado: é uma criança. Com suas asas de anjo, estrelas sobre a areia, permite que descubramos mais sobre Ada.
Campion nunca foi tão longe com uma personagem feminina, nem mesmo no incrível Um Anjo em Minha Mesa. Para as senhoras da aldeia, Ada é um mistério. Dizem que toca seu piano como algo místico. Mais tarde, é vista tocando em estado de sonambulismo, espírito da noite que ataca o objeto e, selada ao mesmo, encontra o som da própria alma.
(The Piano, Jane Campion, 1993)
Nota: ★★★★★
SOBRE O AUTOR:
Rafael Amaral é crítico de cinema e jornalista (conheça seu trabalho)
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