“Mesmo no ilimitado… tudo é Limite”
A primeira imagem de Limite, o rosto da mulher que nos olha e as mãos algemadas, aparece em fusão de dentro daquela outra quase toda branca que abre a projeção: os abutres em volta do rochedo.
Primeira, e não importa que apareça em segundo lugar, porque nela é que de fato o filme abre a conversa. Os abutres no princípio e no fim são vinhetas, sugestão de que o que vemos entre esse prefácio e esse posfácio já não tem vida. E especialmente: primeira, porque de acordo com o que Mário [Peixoto] disse em várias ocasiões foi a partir desta imagem, um rosto de mulher entre mãos algemadas, que viu ao acaso numa revista em Paris, que ele começou a sonhar com Limite. Em depoimento feito em 1983 para o documentário O Homem do Morcego, de Rui Solberg, Mário conta: “A ideia de Limite surgiu de um mero acaso. Eu estava em Paris, tendo vindo da Inglaterra, onde eu estudava, e passando na frente de uma banca de jornais eu vi um folheto com uma fotografia de uma mulher com braços passados na frente do busto, algemados. Braços de um homem. E o folheto chamava-se Vu. Era um suplemento. Continuei a caminhar e aquilo continuou a me perseguir na mente. Eu vi imediatamente em cima do pensamento um mar de fogo e uma mulher agarrada num pedaço de um barco naufragado”.
A segunda imagem, o detalhe das mãos algemadas, surge em fusão de dentro da primeira; a terceira, os olhos da mulher, surge de dentro das mãos; o mar em chamas, de dentro dos olhos; os olhos voltam de dentro do mar; o rosto da mulher de olhos fechados, surge de dentro dos olhos que saem do mar em chamas; e a mulher que sentada na ponta do barco olha o mar, surge de dentro do rosto com os olhos fechados.
No começo de Limite todas as imagens se encadeiam através de fusões. Este encadeamento mostra como a ideia surgiu na cabeça do realizador e sugere como o filme que está na tela deve se passar na cabeça do espectador. As fusões dizem como Mário fez o filme e como o espectador deve re/fazer o filme. Tudo nasce do e para o olhar. Nasce de olhos que surgem de mãos amarradas, mergulham no mar em chamas, se afogam, se queimam e voltam à tona para se fecharem.
Tudo, das linhas de composição à textura da imagem, mostra que o cinema, aqui, não abre – ao contrário, fecha, prende, limita – o olhar. Luz de menos – o fundo escuro por trás do rosto e das mãos algemadas concentra o olhar no que está em primeiro plano. Luz demais – o sol bate forte sobre a água, quase cega, fecha os olhos. Quadro imóvel e bem fechado, foco concentrado e absolutamente definido num único ponto – um pedaço da fita métrica, um detalhe do carretel de linha, um botão, um pedaço da tesoura. Quadro aberto e muito movimentado – a câmera abandona a mulher sobre o rochedo e corre rápido para um lado e outro da paisagem sem se deter sobre nada. Num exemplo, e noutro, e noutro, em todos os momentos do filme, a imagem mais oculta que mostra. Os planos muito próximos da fita métrica ou do carretel de linha não são detalhes especialmente significativos que a câmera vai buscar no meio da ação. Eles são tudo o que vemos da ação. Ver com extrema definição um ponto preciso, o número 13 da fita, o número 30 do carretel, não acrescenta uma informação ao olhar, ao contrário, elimina todas as outras, encobre a mesa de costura. A sensação de limite vem da câmera, do modo de ver, do que se vê na tela, melhor: do que quase não se vê na tela.
De um modo geral o espectador sente a tela de cinema como um lugar sem limites, porque aberta para todos os lados, espaço dinâmico em relação permanente e imediata com o que se encontra além do imediatamente visível. Um lugar sem limites e absolutamente visual, visão total e totalmente objetiva. Para expressar esta sensação, muitas vezes afirmamos que com a fotografia e o cinema podemos ver mais e melhor que a olho nu. No final da década de 20 este sentimento era mais que uma sensação, parecia uma certeza. “A fotografia é a possibilidade de ver os fatos do dia-a-dia sem qualquer ambiguidade”, dizia Lazló Moholy Nagy defendendo o ensino de fotografia no Bauhaus: “No futuro analfabeto será aquele que não souber fotografar”. O cinema é “a possibilidade de tornar visível o invisível, de iluminar a escuridão, de ver sem fronteiras e sem distâncias”, dizia Dziga Vertov para apresentar seu Cinema-olho. É exatamente aí que surge Limite, dentro e em resposta a este momento em que se dizia que o cinema nos dá uma visão limitada do mundo; surge com a afirmação oposta, que o cinema nos leva a ver menos e pior e que nisto é que está a sua força. O cinema, sugere Limite, torna o visível invisível, escurece, desfoca. Ele se empenha em dizer que “mesmo no ilimitado da natureza, tudo é limite”, e repete e repete e repete esta afirmação como se quisesse reiterar que para fotografar o mundo como ele é cada plano no cinema deve começar com um corte, como se a voz de comando usada para interromper a filmagem, “corta!”, servisse para dar início ao plano e a voz de “ação!” para encerrá-lo. A ação pertence ao espectador, ele é quem age, como sugere Octavio de Faria no texto de introdução ao “mapa” ou “partitura” organizado por Saulo: “Limite exige dos que o veem o mesmo senso artístico, a mesma compreensão estética, a mesma percepção simultânea de ritmo e beleza pictorial que seu realizador possui. É obra de um artista que se dirige a artistas”.
É verdade que num primeiro instante a imagem de Limite parece ampliar e não limitar a visão. A câmera age como se em total liberdade, inventa ângulos e movimentos para ver as coisas. Vai lá para cima de um poste de luz para ver lá em baixo o casal que conversa num canto da rua, ou se deita no chão para ver o mesmo casal e o poste de luz lá em cima – o poste então transfigurado numa cruz escura contra o branco do céu, entre o homem e a mulher. Caminha colada aos pés de uma mulher; se inclina para ver, meio deitada, o homem que avança para o fim da rua; se estica toda para seguir a mão que acende um cigarro ou o gesto da mulher que vira a página do jornal; corre rápida da bilheteria para o sino na estação de trem; fica pertinho da roda da locomotiva, do copo que brilha no escuro, das bocas que riem no cinema. Sobe dos pés até o rosto do homem que se curva para beijar a mão da mulher. Voa sobre os telhados da cidade ou sobre o mar, a praia, o céu e o rochedo. Corre repetidas vezes para uma bica d’água ou para a boca do homem que grita um silêncio. Salta rapidamente do detalhe para a cena aberta, do quadro bem iluminado para o de contraste forte, da imagem em positivo para outra em negativo – e é exatamente assim, correndo sem amarras, que corta, fecha, encobre, interrompe, limita.
“Limita” assim como os enquadramentos tortos das ruas de Berlim e as fusões do Multiple Portait, fotografia de Lazló Moholy Nagy limitam; assim como os primeiríssimos planos das folhas, flores e cactos fotografados por Albert Renger Patzsch limitam; como o rosto cortado ao meio em Olho de Lotte de Max Burchartz limita; como o detalhe do olho e da lágrima e como os retratos de Luis Buñuel e Marcel Duchamp feitos por Man Ray, limitam; como as sombras densas nos retratos de Vladimir Maiakovski e de Esther Shub feitos por Alexander Rodtchenko, limitam; como os estudos de expressões de Raoul Hausmann, limitam; como a pose arrumada, quieta, imóvel, das pessoas fotografadas por August Sander, como a aparente desarrumação dos flagrantes de Henri Cartier-Bresson, como o jardim da torre Eiffel visto lá de cima e o retrato de Eisenstein sentado no chão feitos por André Kertész, limitam; como a imprecisão e o tremido das fotos de carros em movimento de Anton Stankowski, limitam. Limite, Mário disse repetidas vezes, nasceu de uma foto que ele viu em Paris (na capa da revista Vu número 74, de 14 de agosto de 1929). Mais exatamente poderíamos dizer que nasceu não de uma, mas da fotografia europeia do final da década de 20, da fotografia que se afastava do que parecia ser o caminho natural da imagem fotográfica: registrar a vida como ela é para os olhos, reproduzir o mundo fiel à sua aparência primeira. A fotografia começava a se imaginar, digamos assim, não exatamente como registro do que se vemos de olhos abertos e sim do que vemos de olhos fechados: no filme, Mário, como a fotografia de então, “conta uma história que se passa na mente”.
José Carlos Avellar, crítico de cinema, na revista Secuencias (número 17, primeiro semestre de 2003; em inglês, em versão abreviada, no livro The Cinema of Latin América, em 2003; em português, pode ser lido aqui). Limite, de Mário Peixoto, estreou em 17 de maio de 1931. Acima, cena do filme Limite; abaixo, a capa da revista Vu, número 74, de 14 de agosto de 1929.
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