Meu problema em Blow-up – Depois Daquele Beijo (1966) era recriar a realidade de forma abstrata. Eu queria questionar “o real presente”: este é um ponto essencial do aspecto visual do filme, levando-se em conta que um dos temas principais da película é: ver ou não ver o justo valor das coisas.
Blow-up – Depois Daquele Beijo é uma récita sem epílogo, comparável àquelas histórias dos anos 1920 em que Scott Fitzgerald manifestava seu desgosto em relação à vida. Eu esperava, durante a realização, que ninguém pudesse dizer, ao ver o filme terminado: Blow-up é um trabalho tipicamente anglo-saxão. Mas, ao mesmo tempo, desejava que ninguém o definisse como um filme italiano. Originalmente, a história de Blow-up deveria ser ambientada na Itália, mas me dei conta bem cedo de que seria impossível localizar o enredo em alguma cidade italiana. Um personagem como o de Thomas não existe de verdade no nosso país. Ao contrário, o ambiente no qual trabalham os grandes fotógrafos é típico da Londres da época em que a narrativa se desenrola. Thomas, além disso, encontra-se no centro de uma série de acontecimentos que é mais fácil relacionar à vida londrina do que à de Roma ou Milão. Ele optou pela nova mentalidade que se criou com a revolução da vida, do costume, da moral na Grã-Bretanha, sobretudo entre os jovens artistas, publicistas, estilistas ou entre os músicos que fazem parte do movimento pop. Thomas leva uma vida regulada como um cerimonial, e, não por acaso, afirma não conhecer outra lei que não seja a anarquia.

Antes da realização do filme, eu tinha passado algumas semanas em Londres, durante as filmagens de Modesty Blaise (1966), dirigido por Joseph Losey e interpretado por Monica Vitti. Naquela época, eu tinha percebido que Londres seria um cenário ideal para uma história como a que eu já pensava em realizar. No entanto, eu nunca havia tido a ideia de fazer um filme sobre Londres.
A mesma história poderia ser ambientada e desenvolvida, sem nenhuma dúvida, em Nova York ou em Paris. Eu sabia, porém, que queria para o meu roteiro um céu cinza, em vez de um horizonte azul-pastel. Eu buscava cores realistas e já tinha desistido, na ideia do filme, de certos efeitos obtidos para O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso, 1964). Na época, eu tinha trabalhado muito para conseguir, com a teleobjetiva, perspectivas achatadas, para comprimir caracteres e coisas e colocá-los em contradição uns com os outros. Ao contrário, em Blow-up, alonguei as perspectivas, tentei pôr ar, espaços, entre as pessoas e as coisas. A única vez em que usei a teleobjetiva no filme foi quando as circunstâncias me obrigaram: por exemplo, na sequência no meio da multidão, do engarrafamento.
Blow-up – Depois Daquele Beijo é uma récita sem epílogo, comparável àquelas histórias dos anos 1920 em que Scott Fitzgerald manifestava seu desgosto em relação à vida. Eu esperava, durante a realização, que ninguém pudesse dizer, ao ver o filme terminado: Blow-up é um trabalho tipicamente anglo-saxão.

A grande dificuldade com a qual me defrontei foi a de devolver a violência da realidade. As cores enfeitadas e suavizadas costumam parecer as mais duras e agressivas. Em Blow-up, o erotismo ocupa um lugar na linha de frente, mas, com frequência, o destaque é posto em uma sensualidade fria, calculada. Os traços de exibicionismo e de voyeurismo são especialmente reforçados: a jovem mulher no parque tira a roupa e oferece seu corpo ao fotógrafo em troca dos negativos que deseja tanto recuperar.
Thomas é testemunha de um abraço entre Patrizia e seu marido, e a presença deste espectador parece duplicar a excitação da jovem mulher.
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O aspecto escabroso do filme tornaria quase impossível a realização dele na Itália. A censura nunca toleraria algumas imagens. Embora, sem dúvida, esta tenha se tornado mais tolerante em muitos lugares do mundo, o meu país continua sendo aquele onde se encontra a Santa Sé.
No filme, há, por exemplo, uma cena no ateliê do fotógrafo em que duas jovens mulheres de vinte anos se comportam de um jeito muito provocante. Ambas estão completamente nuas, mas esta cena não é nem erótica nem vulgar. É fresca, leve, e, me atrevo a ter esperança, engraçada. Claro que não tenho como impedir que alguém possa encontrar aspectos escabrosos nela, eu precisava dessas imagens no contexto do filme e não quis abrir mão delas com o pretexto de que poderiam não se encaixar no gosto e na moral alheios.
Como escrevi outras vezes a propósito dos meus filmes, minhas histórias cinematográficas são documentos construídos não sobre uma sequência de ideias coerentes, mas sobre lampejos, ideias, que nascem a cada instante. Eu me recuso, portanto, a falar das intenções que pus no filme ao qual consagro, a cada vez, todo o meu tempo. É impossível, para mim, analisar uma das minhas obras antes que o trabalho esteja completo. Sou um criador de filmes, um homem que tem certas ideias e que espera exprimir-se com sinceridade e limpidez. Eu sempre conto uma história. Quanto a saber se trata-se de uma história sem nenhuma correlação com o mundo em que vivemos, sou sempre incapaz de decidir antes de tê-la contado.

(…) minhas histórias cinematográficas são documentos construídos não sobre uma sequência de ideias coerentes, mas sobre lampejos, ideias, que nascem a cada instante.
Quando comecei a pensar neste filme, com frequência fiquei acordado, de madrugada, refletindo e tomando notas. Logo, esta história e suas mil possiblidades me fascinaram, e tentei entender aonde podiam me levar suas mil implicações. Mas, quando cheguei a determinada etapa, eu disse a mim mesmo: comecemos com o fazer o filme, quer dizer, vamos tentar, bem ou mal, narrar sua trama, e depois… Ainda hoje me encontro nesta etapa, enquanto a realização de Blow-up está em fase avançada. Para ser franco, ainda não estou completamente certo do que estou fazendo porque ainda estou no “segredo” do filme.
Acho que trabalho de um modo ao mesmo tempo reflexivo e intuitivo. Por exemplo, poucos minutos atrás, eu me isolei para refletir sobre a cena seguinte e tentei colocar-me no lugar do personagem principal, quando ele descobre o cadáver. Parei nas sombras do gramado inglês, fiz uma pausa no parque, na misteriosa claridade dos letreiros luminosos de Londres. Aproximei-me deste cadáver imaginário e me identifiquei totalmente com o fotógrafo. Senti com muita força sua excitação, sua emoção, os sentimentos que desencadeavam mil sensações no meu “herói” pela descoberta do cadáver e seu modo seguinte de se animar, pensar, reagir. Tudo isso só durou poucos minutos, um ou dois. Depois, o resto da trupe chegou, e minha inspiração, minhas sensações desapareceram.
Corriere della Sera (12 de fevereiro de1982; republicado no catálogo da mostra Aventura Antonioni, do Centro Cultural Banco do Brasil, com tradução de Aline Leal; pgs. 413-415).

Veja também:
Confusões à Italiana, de Pietro Germi